Dois pesos e duas medidas
Enquanto Cuca continua sob suspeita para boa parte da imprensa, e assim ficará por um longo tempo, Lula até pedido de desculpas público
A vida em sociedade é bastante complexa. Há milhares de regras, de leis, de obrigações e de direitos que regem o nosso dia a dia. Muitas vezes deparamos com infrações que atentam contra toda uma comunidade e é preciso, nesses momentos, uma resposta estatal para definir o certo e o errado.
A Justiça, com todo seu aparato, foi criada para isso. Permitir que quem cometeu um crime seja acusado, tenha o direito de ampla defesa e seja julgado. A condenação ou a absolvição vai depender da habilidade de cada uma das partes na hora de convencer um juiz ou mesmo um tribunal.
Quem é acusado de cometer algum tipo de crime tem ainda, ao seu favor, o estatuto da prescrição. Essa regra, que varia de país para país, determina um intervalo de tempo em que o Estado perde o direito de exigir a punição e a imputação de uma pena.
A legislação brasileira adota a prescrição de cada crime de acordo com o tempo máximo da pena, um crime de homicídio, por exemplo, tem pena que varia de 6 a 20 anos. Nesse contexto, a legislação adota que crimes com pena máxima superior a 12 anos terão prazo prescricional de 20 anos. Esse tempo pode ser reduzido dependendo da idade do infrator.
No Brasil apenas os crimes de racismo e que envolvem a ação de grupos armados - civis ou militares - contra a ordem constitucional e o estado democrático são considerados imprescritíveis. O Congresso Nacional discute a inclusão de outros crimes nessa lista, mas, por enquanto, esses são os únicos elencados em nosso cabedal legal.
Diante desse quadro, uma determinada pessoa não pode mais ser punida se o crime que ela cometeu tiver prescrito. Foi o que aconteceu com o técnico de futebol Cuca. O Tribunal Regional de Berna, na Suíça, anulou a sentença que o condenou por supostamente manter relação sexual sem consentimento com uma menina. O caso aconteceu em 1987, durante uma excursão do Grêmio, time que ele jogava na época, ao país europeu.
A defesa do técnico solicitou à Justiça da Suíça abertura de um novo processo para rever o caso, argumentando que o treinador não contou com um representante legal e foi julgado à revelia. O pedido de um novo julgamento foi aceito pela juíza Bettina Bochsler em 22 de novembro de 2022, mas o Ministério Público alegou não ser possível realizá-lo pelo fato de o crime ter prescrito. O órgão, então, sugeriu a anulação da pena e o fim do processo. A juíza aceitou a decisão do MP e a extinção da sentença foi publicada nesta quarta-feira, 3 de janeiro.
Assim que a notícia chegou ao Brasil, vários órgãos de imprensa procuraram afirmar que Cuca não foi inocentado, só foi beneficiado pela prescrição. Só que esses mesmo órgãos de imprensa assumiram postura diferente num caso famoso ocorrido no País.
Estamos falando do presidente Lula. Ele foi condenado pela Justiça em várias instâncias e por uma filigrana jurídica, acabou tendo suas condenações anuladas pelo Supremo Tribunal Federal. Como os crimes de que ele era acusado prescreveram, Lula não pode ser julgado novamente. Nesse caso, o atual presidente também não foi inocentado, só beneficiado pelo mesmo tipo de instrumento legal que extinguiu a pena do técnico Cuca.
Só que as narrativas são muito diferentes e levam em conta dois pesos e duas medidas. Enquanto Cuca continua sob suspeita para boa parte da imprensa, e assim ficará por um longo tempo, Lula até pedido de desculpas público recebeu de uma grande emissora de televisão.
O que precisa ficar claro é que a defesa de Cuca sempre pediu um novo julgamento para que ele pudesse se defender e provar cabalmente sua inocência. Isso não lhe foi permitido na Suíça.
Já a defesa de Lula comemorou a prescrição e nunca nem tentou provar a inocência do cliente. De quebra seu principal advogado ainda ganhou uma cadeira no mesmo STF que extinguiu as ações penais que o atual presidente havia sido condenado.
Lula, beneficiado pela prescrição de seus crimes, não só teve o direito de voltar a trabalhar como se elegeu presidente da República. Vamos ver se Cuca vai ter a mesma chance no mercado de trabalho.