O imbróglio sobre o patrimônio ferroviário local

A dúvida que fica é como a Prefeitura, o Governo do Estado, a Agem, a CDHU e o BNDES pretendem compatibilizar as pretensões de uso cultural, comercial e imobiliário dos imóveis

Por Cruzeiro do Sul

Fachada da Estação Ferroviária de Sorocaba

A notícia veiculada pelo jornal Cruzeiro do Sul em 3 de outubro último, sobre a assinatura de um acordo de cooperação para planejamento do projeto de valorização do patrimônio imobiliário e requalificação urbana da área da antiga Estação Ferroviária de Sorocaba, reflete um anseio da população sorocabana de pelo menos duas décadas, quando aquelas instalações históricas foram fechadas após a erradicação do transporte de passageiros a partir do processo de federalização e concessão à iniciativa privada das linhas da antiga Ferrovia Paulista S/A (Fepasa), em 1999.

Mas precisa ser encarada com cautela pois, ao prometer a implantação de um polo de cultura, turismo e lazer, além de investimentos em programas habitacionais nos espaços vagos da área, esbarra em um grande imbróglio envolvendo a responsabilidade legal e a vocação de cada um dos 40 imóveis que compõem o antigo Complexo Ferroviário de Sorocaba -- cuja área é de 199 mil metros quadrados, entre a avenida Afonso Vergueiro e o Largo do Líder, em Santa Rosália.

Desde 2007, quando se deu a extinção da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), que havia incorporado o patrimônio da Fepasa em 1998 dentro do processo de renegociação da dívida do Governo do Estado de São Paulo, todos os imóveis do Complexo Ferroviário de Sorocaba passaram à gestão direta da União por intermédio do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), vinculado ao Ministério dos Transportes, e da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), do Ministério da Economia. Os imóveis são divididos em duas categorias: não-operacionais e operacionais.

Os imóveis não-operacionais são aqueles desvinculados da prestação do serviço ferroviário do transporte de cargas e que, por essa razão, podem ser destinados pela SPU para outras finalidades. Dos 40 imóveis que compõem o complexo, apenas sete possuem essa característica.

Destes, quatro já são objeto de cessão provisória pela União à Prefeitura de Sorocaba: a Estação Ferroviária (que aguarda restauração desde 2005, ano da assinatura do convênio), seus dois armazéns (que sediam o Barracão Cultural e o Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba - Macs) e a Escola Municipal Matheus Maylasky.

Os outros são os do antigo complexo administrativo da Unidade Regional nº 1 da Fepasa (UR1) com portaria na rua Paissandu, nº 57: a guarita, o edifício-sede e o antigo refeitório. Sobre os dois primeiros ainda incidem responsabilidades do abandono pelo Instituto Federal de São Paulo - IFSP, que os recebeu por cessão em 2015 para a instalação de um câmpus, mas teve as obras embargadas em 2016 por tê-las iniciado sem autorização do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).

A situação mais complexa se refere aos outros 33 imóveis considerados operacionais e que, embora de propriedade do Dnit, estão vinculados ao contrato de concessão firmado pela antiga RFFSA com a Rumo Malha Oeste S.A., atual denominação das antigas empresas Ferroban e América Latina Logística.

Eles eram utilizados até 2015 para manutenção ferroviária e compõem a maior parte dos 60 mil metros quadrados de área construída.

Em setembro de 2021, a Rumo Malha Oeste teve aprovado o requerimento de relicitação (devolução negociada da concessão), iniciando-se um processo de apuração de ativos e passivos que deve se estender até 2025.

Nessa repactuação, a União deverá cobrar da concessionária uma indenização pela depredação das instalações.

Pela relicitação, o Ministério dos Transportes objetiva encontrar um novo concessionário para o transporte de cargas na Malha Oeste, importante ferrovia que liga Corumbá (MS), na divisa com a Bolívia, com Mairinque (SP), a partir de onde se tem acesso ao Porto de Santos, e essencial para o transporte de produtos como celulose e minério.

Nesse processo, há a possibilidade do novo concessionário ter interesse em retomar a manutenção de locomotivas e vagões nos imóveis operacionais do complexo, ou de explorá-los comercialmente como projetos associados ao novo contrato. Ou seja, os imóveis não necessariamente estariam desembaraçados para novos empreendimentos.

A própria efetivação do Trem Intercidades entre Sorocaba e São Paulo pelo Governo do Estado, anunciado como vetor de atração dos investimentos prometidos, também depende da solução para a Malha Oeste, uma vez que as linhas férreas que passam pela Estação Ferroviária de Sorocaba são federais e, assim como os imóveis operacionais, estão atreladas ao contrato de concessão do transporte de cargas, integrando o processo de relicitação.

A dúvida que fica é como a Prefeitura de Sorocaba, o Governo do Estado de São Paulo, a Agência Metropolitana de Sorocaba (Agem), a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), partes integrantes do acordo de cooperação assinado, pretendem compatibilizar as pretensões de uso cultural, comercial e imobiliário dos imóveis sem o devido desembaraço da característica operacional da maior parte do complexo.

Nesse sentido, ao prosperar a relicitação da Malha Oeste, a construção de uma nova oficina, fora da área urbana do município, e de um contorno ferroviário que desvie os trens de carga -- liberando as linhas existentes que passam pela Estação Ferroviária para o futuro Trem Intercidades -- pode ser uma solução.