'Amanhã eu vou' apresenta sonhos e desânimo
No final da década de 1980, as atrizes Tuna Dwek e Lilian Blanc se encontraram pela primeira vez num espaço na rua Augusta, em São Paulo, que, se lembram, era algo próximo a uma garagem escura. A dupla se preparava para fazer um teste para um projeto que se perdeu na memória. O que sobreviveu daquele primeiro encontro foi a lembrança do carinho e da conexão das duas em cena.
Desde então, as atrizes cultivam o desejo de trabalhar juntas. Algumas chances se fizeram, como quando participaram do derradeiro filme do cineasta Hector Babenco (1946-2016), "Meu amigo hindu", mas não foi o bastante. As duas queriam dividir uma obra completa. Eis que, mais de 20 anos após aquele primeiro encontro, Tuna e Lilian finalmente se unem em cena.
As atrizes estrelam "Amanhã eu vou", espetáculo escrito pelo dramaturgo Clovys Torres a pedido de Tuna para refletir as dores e os medos do momento atual. “Quando ela me ligou, era um período de muita angústia, quando tudo era incerto e assustador. Conversamos sobre a falta dos palcos, de abraçar as pessoas, perspectiva, sonhos, e ela me disse que queria fazer um texto meu, que queria trabalhar com a Lilian, e a gente encerrou a conversa meio com aquela mosca buzinando e zanzando”, explica o autor.
“Comecei a vislumbrar o encontro e pensei que só havia um jeito: falar do que estávamos sentindo, que era essa falta de perspectiva, as queimadas, esse governo. Escrevi baseado na realidade e no absurdo, com inspiração no teatro do absurdo, que é quando as palavras perdem sentido por não dar conta da realidade. Daí veio a poesia, que é um universo pelo qual transito com frequência, e surgiu esse texto sobre a necessidade de alimentar a esperança e o afeto numa terra arruinada. O momento era de fabular dentro do caos.”
Torres escreveu então o primeiro ato e entregou para as atrizes com a condição de que só escreveria o segundo se elas aprovassem. Com o sinal verde, surgiu "Amanhã eu vou", drama que estreia na sexta, 19, sob a direção de Cristina Cavalcanti.
Embora pensada para o teatro, a obra cumprirá uma temporada on-line como registro da gravação de uma apresentação, que receberá em sua pós-produção um tratamento cinematográfico, criando um projeto híbrido voltado para a internet e seguindo a onda de espetáculos on-line surgidos como forma de sobrevivência artística e financeira de profissionais da arte durante a pandemia, que congelou o mercado cultural em 2020.
Embora muitos colegas não considerem a experiência como teatro, Cavalcanti vê a linguagem com bons olhos. “O teatro não vai morrer. Essa papo sempre surge e ele sempre sobrevive. Esse híbrido entre teatro e outras linguagens, como internet e cinema, já acontecia antes da pandemia, mas agora se intensificou. E é uma nova opção maravilhosa. Eu acredito que veio para ficar”, conceitua a diretora.
Terra arrasada
A obra narra o encontro entre duas mulheres num futuro distópico, no qual uma peste dizimou toda a população, e tudo o que restou foi uma terra arrasada na qual as duas dividem o espaço e buscam esperanças de um futuro. Uma delas sonha, enquanto a outra permanece sem perspectivas.
“Existe nesta distopia uma pequena brecha para a utopia, que é o sonho. Minha personagem dorme e sonha. Essa frase parece banal, mas, dentro desse futuro, desse planeta dizimado, existe uma mulher que dorme e sonha. Estamos vivendo realidades, situações, aspirações, desilusões, incógnitas, dúvidas e perplexidades variadas. É o sentimento de estarrecimento coletivo. O texto tem uma secura no vocabulário, que é belíssimo e lírico, mas é preciso”, comenta Tuna.
Blanc, por sua vez, enxerga na obra uma forma de atingir o público em busca de uma espécie de autocrítica acerca da forma como a pandemia vem sendo tratada não apenas pelo poder público, mas pela população. “Veio a calhar tanto em texto quanto em tempo, aplacando um pouco nossa ansiedade. Ela retrata uma espécie de fim de mundo com uma peste que passa pelo espaço sem deixar nada, animais, florestas, seres humanos, sobram apenas duas mulheres arrasadas, perdidas num canto do universo, que se aturam e se amam, se ajudam e atrapalham sem muita saída. Falamos de nós mesmos. Pelo andar da carruagem, se continuarmos com essa displicência, certamente será um prenúncio do futuro da humanidade”, acredita.
“Vivemos um período muito triste. Feliz ou infelizmente, o ser humano tem memória curta. O mundo já presenciou várias guerras, várias pandemias. Mudamos algo? Aprendemos algo? Fica a interrogação vagando assim como essas duas últimas espécies de seres. As últimas bolachas do pacote”, continua.
Gravado no Viga Espaço Cênico, "Amanhã eu vou" fica em cartaz em temporada limitada até 21 de março, com sessões duplas, às 17h e às 20h e ingressos gratuitos. A transmissão acontece na Plataforma Teatro, uma espécie de streaming idealizado por Cristina Cavalcanti para acolher a gravação de espetáculos em curtas temporadas. (Bruno Cavalcanti - Estadão Conteúdo)