Conexões entre Eva e Lilith inspiram espetáculo no Sesc Sorocaba
A história de Adão em busca de uma companheira para dividir o recém-inaugurado Éden é o ponto de partida do espetáculo teatral “Soror”, que será encenado nesta sexta-feira (6) e sábado (7), às 20h, no teatro do Sesc Sorocaba. A montagem, que aborda as relações patriarcais e a resistência feminina, marca a estreia da atriz Luisa Micheletti na dramaturgia e tem direção de Caco Ciocler.
O espetáculo integra a programação especial do projeto “Mulheria”, que em 2020 convida o público a refletir sobre questões como autoamor, autocuidado, autoestima, coletividade, padrões de beleza e ecofeminismo, entre outros assuntos que envolvem o “ser mulher”.
Lilith, a primeira mulher do mundo segundo interpretações da gênese, se recusa a ser submissa ao companheiro Adão. Surpreso com a natureza imprevisível e rebelde da parceira e incapaz de lidar com sua autonomia, o primeiro homem chama pelo pai e ordena que ele providencie outra mulher. O pai então fabrica Eva, bela, recatada, obediente e acolhedora. No entanto, Eva e Lilith se aproximam e aos poucos estabelecem inesperadas conexões morais, filosóficas e de humor.
Destino limitado
Na história, Luisa, que assina o texto, parte da ideia de que o feminino sempre enfrentou o destino de que, diferentemente dos homens, os papéis das mulheres sempre foram limitados, nunca múltiplos. “O homem sempre conseguiu ser um herói e pai, amante, bandido, ao mesmo tempo. No caso da mulher, ela é vulgar ou santa, mãe ou bela, indecente ou respeitável”, comentou Luisa, à agência Estadão Conteúdo.
Para a autora, que também atua na montagem, a polarização acaba por aprisionar as mulheres e é quando “Soror” propõe uma solução ao reunir Eva e Lilith -- duas figuras do mito cristão e aparentemente antagonistas. “Imaginei que pudesse criar um mundo em que as duas tivessem a chance de discutir seus próprios destinos”.
Ao contrário da fama mundial de Eva, a história de Lilith tem uma trilha mais oculta. A deusa dos ventos e das tempestades, adorada na antiga Mesopotâmia e na Babilônia, surge como demônio na crença tradicional cristã, de onde seu nome foi banido. É no Islã que ela ganha narrativa como a primeira mulher criada por Deus para corresponder aos desejos de Adão. “Lilith recusa se deitar com ele e ficar por baixo. Ao propor que os dois fiquem lado a lado, o homem rebela-se por considerá-la inferior”, afirma a autora.
Entre os cristãos, Lilith ganha a forma animal da serpente, responsável por enganar Eva e arrancar o novo casal do jardim do Éden. “E mais uma vez uma mulher é culpada por acabar com os planos perfeitos dos homens”, diz a autora. “Na peça, reúno esses fragmentos, propondo uma chance de que Eva e Lilith superem a difícil imposição e culpa histórica”. Além de Luisa, a montagem traz no elenco Daniel Infantini, Erica Montanheiro e Geraldo Rodrigues.
Representações clássicas
Na encenação de Caco Ciocler, a equipe se voltou para as representações clássicas, nas artes, do casal banido do jardim. “Em grande parte, as pinturas foram registros de uma visão masculina, mercadológica sobre um imaginário. Nesse sentido, o patriarcado e o machismo acabam por manter essa reprodução. E, de alguma forma, ainda presos às obras”, diz Luisa.
Para a autora, o antigo mito ganha um olhar contemporâneo, que inclui cenas de festas e palestras no estilo das conferências TED. “Resolvi trazer também Adão e Deus, que, na peça, tem um caráter de espiritualidade e menos como o criador para os cristãos”, acrescenta.
Na cena da palestra, Luisa conta que o criador sobe ao palco para contar os bastidores de seu universo, discorrendo sobre leis da física quântica. “É quando uma delas tenta oferecer um outro ponto de vista e é silenciada, o que vai fortalecendo a fraternidade entre essas mulheres”, explica.
Como diretor, Ciocler afirma que precisou compreender seu próprio espaço diante de uma dramaturgia que deseja debater o grito das mulheres e o enfrentamento da opressão. “Por se tratar de um texto feminista, sempre imaginei que eu tivesse que me ausentar da minha masculinidade. A melhor maneira foi deixar o texto da Luisa em evidência”, diz.
Para pensar
Uma peça escrita por uma mulher sobre o feminino não parece que vai interessar um homem comum. “Ele vai pensar: É uma peça que só dialoga com elas”, diz a atriz e autora Luisa Micheletti. Nos últimos anos, saber se comunicar tem sido a melhor estratégia para que qualquer produção teatral não fique aprisionada no próprio tema, conversando apenas entre pares, como é o mais comum.
Em “Soror”, seria bastante natural, e quase imperceptível na cena, que o texto de uma autora também tivesse uma mulher na direção. Em São Paulo, por exemplo, tem crescido o número de produções vocacionadas com equipes -- do texto à produção executiva -- formada por mulheres. A questão, para Luisa, pairou, tanto quanto sua decisão em convidar Ciocler para dirigir. “Imagino que o fato de uma autora escrever pode atrair um público específico, as mulheres, assim como um homem dirigir, atrair o interesse deles, tornando o debate no palco possível.” Para Ciocler, o exercício significa, mais que nunca, ouvir e aprender com elas. “Cabe aos homens a chance de implodir o machismo por dentro”, conclui.
Os ingressos, disponíveis até o fechamento desta edição, custam R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 8,50 (credenciados do Sesc) e podem ser adquiridos na Central de Atendimento da unidade (rua Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade). A classificação indicativa é de 16 anos. (Da Redação, com informações de Estadão Conteúdo)