Pretérito perfeito?
Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto
Cada um tem seu jeito de se relacionar com o passado. Conheço gente que faz questão de ignorar as décadas passadas por acreditar que isso emperra a vida. Tem muito de coach nessa maneira de encarar as coisas. Conheço gente que vai para a outra ponta e acaba virando refém, sei lá, dos anos 80. Tem muito de necrofilia nessa maneira de encarar as coisas.
Será que ter entrado na casa dos 40 fez com que eu me tornasse um moderado meio sem graça? É que eu vou dizer aqui que o caminho do meio é o caminho da sabedoria. Ou seja: relacionar-se bem com o passado é evitar o progressismo hiperativo e o passado sepulcral. Nem Jetsons, nem personagem perturbada de Dickens.
Não estou dizendo aqui que sou a pura fonte do equilíbrio. Minha relação com o passado passa por fases. Não faz muito tempo, eu acendia algumas velas para Pedro Nava e sua monumental obra autobiográfica. Hoje permanece o respeito. A veneração enfraqueceu. Não morreu, e talvez ela fique forte novamente daqui alguns anos.
No tal período de paixão por Pedro Nava, eu ficava cavando o passado de várias maneiras. As histórias familiares ganhavam contornos épicos. Eu ficava um bom tempo pesquisando sobre uma casa velha e obscura localizada numa ruazinha qualquer. Aí, do nada, fui baixando a bola.
Não que eu tenha ido para o ponto oposto. Não saí por aí batendo palmas para os novos modelos de telefones celulares. Não fiquei projetando as maravilhas de uma civilização conectada. Eu apenas parei com a arqueologia meio maníaca.
Hoje, gosto de revisitar as décadas passadas pelos vídeos do YouTube. Fazer as coisas dessa maneira é paradoxal, e eu sou o primeiro a reconhecer.
Como sou um tagarela convicto, fico atormentando a Patrícia com os meus comentários. Estou craque na garimpagem de edições de 1986 do “Jornal da Globo”. Que saudade daquela época em que os assuntos quentes eram tabelamento de preço e dívida externa! Cavamos fundo o buraco de lá pra cá.
Falo das notícias de 86 com a Patrícia, e aproveitamos o embalo para tecermos alguns comentários sumamente relevantes. Semana passada mesmo, antes do sono dos justos, conversamos sobre o mundo audiovisual da nossa meninice e sobre o mundo audiovisual de hoje.
É que eu estava comentando com ela a respeito de algumas figuras muito famosas entre os alunos e desconhecidas por mim. Falamos da pulverização que não era a marca da nossa época de infância e adolescência. Crescemos na era dos canais de TV aberta. Cinco ou seis opções. Nada dessa história de canais de gastronomia passando a programação sem interrupção. Nada dessa história de youtubers analisando a política nacional ou um jogo de PS5.
Tínhamos pouca escolha. Parece pobre, mas eu não reclamava. A Patrícia não reclamava. E, nesse ponto, vem a constatação amargurada: com menos opções, éramos mais unidos. A novela das 9 arregimentava várias camadas da população. O moleque de 14 anos via o que a avó de 70 estava vendo. O país parava no último capítulo de determinadas novelas. O que o telejornal passava era pauta obrigatória das discussões do dia seguinte.
Tudo era muito mais fechado, claro. As notícias chegavam a partir de pontos de vista muito mais limitados. Muitas pessoas e muitas situações não tinham visibilidade. Hoje temos mais vozes. É um avanço. E temos mais ruídos. É um perigo. Formam-se nichos encapsulados. Abre-se espaço para desacreditar os fatos mais evidentes. Os grupos estão se isolando.
Tenho minhas convicções na esfera política. As notícias com as quais me deparo não são as mesmas que aparecem para pessoas com uma outra visão de mundo. Quando muito, o ponto de partida é o mesmo. E para nisso. Cada grupo carrega suas informações criptografadas. Quem não concorda conosco parece viver num universo paralelo. Vocês sabem do que estou falando.
Seria burrice defender que as coisas voltassem a ser como eram na época do Eliakin Araújo. Aquilo ali já foi. Mas não custa nada sentir uma saudadezinha. O passado pode ser um tesouro à nossa disposição.