A caixinha redentora
Comecemos com um paradoxo. Uma certeza nesta vida: nossa instabilidade. Poderia ser também: nossa fragilidade. A história da dor de dente ilustra bem.
Dor de dente é algo pequeno, meio ridículo. Algo pequeno e meio ridículo para quem não sente a dor naquele momento. Dor de dente, por mais besta que possa parecer, derruba qualquer um. No auge da crise, com a boca dando pontadas lancinantes, a vida se torna um festival de horrores. Quando melhoramos, voltamos a ver as cores, os detalhes, os encantos. A convalescência nos transforma em poetas. Depois passa. Voltamos ao caminho do meio. Questão de calibragem.
Poderíamos ficar um tempão discutindo acerca da instabilidade da vida. Não faltariam exemplos. Quem escreve semanalmente sabe muito bem que a vida é meio traíra. Os dias inspirados andam de mãos dadas com os dias ocos, modorrentos.
Eu já disse aqui que gosto muito de ler crônicas. Talvez seja bobagem minha, mas consigo reconhecer quando um cronista escreveu inspirado ou arrastado. Difícil demonstrar o que estou dizendo. É algo que pertence mais ao terreno da entrelinha. Como eu disse, talvez seja bobagem minha. Mas de uma coisa estou certo: neste espaço, vivo semanas de fartura de ideias e semanas em que tenho de espremer o cérebro para sair algo minimamente legível.
O leitor que chegou até aqui já deve ter percebido que a coluna de hoje é fruto da aridez mental do cronista. É o que justifica os parágrafos anteriores, todos eles tendo por base a falta de assunto. O ideal é matutar a respeito do que escrever ao longo da semana e sentar diante do computador com tudo muito bem estruturado na mente. É verdade, e é difícil. Eis o mistério da fé: falar é fácil, executar é que são elas. Se fosse fácil, todo mundo estaria feliz, em forma, comendo salada, dormindo oito horas por noite, amando o próximo como a si mesmo, compreendendo que aquele cocô de pomba que caiu no carro é parte de um propósito maior. Essas coisas.
(Resolvi dar uma pausa assim que terminei o parágrafo anterior. Fui dar uma bicada no café. Tive de lidar com um dilema nanico: seguir na toada de justificar a falta de assunto ou apresentar algo concreto, ainda que brevemente, para que o leitor não se sinta tapeado. Noutros carnavais, eu optaria pelo primeiro caminho. Agora, mais maduro, mais centrado, mais empático, sigo pelo segundo caminho. A partir do próximo parágrafo, este texto trará algo mais objetivo.)
Semana passada eu estava na farmácia. Perto do caixa tinha um freezer. Isotônicos, sucos etc. Tinha também água na caixa. Para quem nunca viu, tento explicar: parece uma caixinha de leite,
só que tem água. Resolvi comprar, não por imaginar que aquela água tivesse poderes mágicos. Eu apenas vislumbrei a possibilidade de aproveitar aquela caixinha e tomar minha santa água cotidiana mantendo o frescor (da água) que as garrafinhas de plástico não podem oferecer. Muito bem. A caixinha de água está bem diante de mim neste momento. Tem dado certo a minha relação com ela.
Não sei se você é assim, mas tenho a mania de ler os textinhos das embalagens. Estou acostumado a textos áridos nesses contextos. Informações, pá, pum, já era. Só que as coisas estão mudando, como diria o poeta. A caixinha de água, além das informações gélidas, traz um texto que é o casamento do discurso motivacional com o pequenino sermão. Aí, parei: opa, o caso da caixinha de água não é algo isolado; temos uma tendência aqui: o gosto pelo sermão nos dias que correm. Era o gatilho do qual eu precisava. Só que ele chegou tarde nesta semana.
Não quero perder o embalo. Na próxima coluna, falo um pouco mais da maldição que é esse gosto pelo sermão nos dias que correm.