Ser sujo é bom

O cronista é um leitor devoto dos grandes romancistas do século 19, mas também repara nas questões do presente

Por Cruzeiro do Sul

06/05/23. 9h32 da manhã. Dia da coroação do rei Charles. O cronista que ocupa este espaço tinha em mente escrever sobre o desafio de ser romancista nos dias de hoje. Só que o cronista decidiu escrever esta coluna na sala, e na sala há uma televisão, e a televisão mostra uma carruagem dourada percorrendo a cidade de Londres.

Enquanto a carruagem dourada desfila por Londres, comentaristas dão detalhes sobre os protocolos da coroação, sobre histórias da realeza, sobre os custos dessa família. Aqui o cronista é categórico: a tal carruagem dourada é de uma breguice atroz. Ele comenta isso com a esposa. A esposa, que já viu vários episódios da série “The Crown”, concorda.

Aí o cronista pensa: o brega é parte de sua vida. Ele não nasceu em Viena, em meados do século 19. Não foi educado por preceptores. Não foi assíduo frequentador de óperas. Ele nasceu no glorioso ano de 1977. Passou a infância nos anos 80, em Sorocaba. Definitivamente, nosso cronista não pode bancar o esnobe.

Constatar que o brega é parte de sua vida não é motivo do consternação para o cronista. Nem só de sonetos parnasianos vive o homem. E, neste momento, o cronista percebe ser possível unir o fio da breguice da coroação com o fio do desafio de ser romancista nos dias de hoje. O cronista também é professor e tem a mania de dar conselhos à juventude sorocabana.

Convém pensar na seguinte situação: o jovem romancista procura o cronista; o jovem romancista quer escrever um romance monumental, daqueles capazes de retratar uma grossa fatia da sociedade; o jovem romancista já leu os grandes da arte romanesca; ainda assim, a história do jovem romancista não deslancha; o jovem romancista quer que o cronista o ajude.

O cronista é um leitor devoto dos grandes romancistas do século 19. Sempre que pode volta a eles. Não que os releia sempre na íntegra. Sua relação com eles é musical. Algumas páginas relidas já são alentadoras. Mas o cronista, para variar, está indo para um caminho indesejado na sua exposição. O cronista é um leitor devoto dos grandes romancistas do século 19, mas também repara nas questões do presente. Ele lê os jornais. Ele se depara com as notícias que estão dando o que falar.

O cronista vê que protagonistas da vida nacional participam de situações de comédia pastelão. Os detalhes são inacreditavelmente ridículos. Se alguém colocasse esses detalhes numa obra de ficção, certamente o autor seria considerado um esculachado de marca maior. Quando muito, o criador desses enredos trabalharia em roteiros de filmes exibidos nas gloriosas sessões da tarde. Naqueles filmes, no final dos anos 80, o cronista se deparou com personagens maravilhosamente imbecis. Não deixa de ter a sua graça ver os trapalhões da ficção ganhando o noticiário nacional.

Nessas horas, a veia esculhambadora do cronista lateja forte. Faz muito, muito tempo, que ele acredita que a humanidade, apesar de alguns soluços sublimes, é marcada pelo estigma da burrice. Faz muito, muito tempo, que o cronista percebeu que a vida é assim mesmo. Que não adianta ficar bancando o puro. E então o cronista recomenda ao jovem romancista: não busque as situações sublimes, elevadas, imaculadas, delicadas; chafurde na lama da realidade; veja a carruagem dourada sem bancar o esnobe.