Tutorial

Imagine que você está empolgado depois do passeio pela literatura brasileira e resolve dobrar a aposta

Por Cruzeiro do Sul

O que mais tem na internet é gente fazendo vídeos com tutoriais. Para os que não frequentam as redes sociais, explico: o tutorial mostra como fazer determinada coisa. Nessa seara, o céu é o limite. Tem tutorial para cada detalhe das nossas vidas. Desde como colocar a fronha corretamente no travesseiro até como tirar nota máxima na redação do Enem. Como tirar mancha de vômito do sofá até como ficar milionário guardando um centavo por dia.

Seria fácil -- e precipitado -- dizer que toda essa gente está produzindo lixo em forma de tutoriais. Há muita porcaria, mas isso é parte do jogo. E há muita coisa útil. Só tenho uma reclamação: quase sempre os tutoriais tratam de questões práticas. Eu gostaria de ver mais abordagens comportamentais.

Notando tal lacuna, decidi fazer, aqui, um tutorial escrito. Não terá o encanto e a malemolência do vídeo, mas a gente trabalha com as ferramentas disponíveis. Devo tratar de qual assunto? Confesso que vários surgiram na minha cabeça. Escolhi um tópico que pudesse aliar utilidade com cultura geral. Vou mostrar como fazer bonito numa livraria.

Você chega à livraria. Você está no começo de um namoro. Você está apaixonado. O amor da sua vida lê bastante, vive falando a respeito de livros. Você, infelizmente, não lê muito. Mas você, nas conversas com o amor da sua vida, ouve as referências eruditas e faz “hum-hum” concordando. O amor da sua vida tem a impressão de que você é uma pessoa meio silenciosa, apenas isso. Pessoa silenciosa, mas que transita bem pelo universo dos livros.

Só que o tempo é implacável. Difícil, para você, sustentar a farsa. A hora da verdade está logo ali, na próxima curva. Você tem uma vida corrida. Não sabe por onde começar. Vê uns vídeos bestas na internet, em que a pessoa que está falando está mais preocupada com o a capa do livro do que com o conteúdo. Eu entendo seu drama e estou aqui para ajudar.

O amor da sua vida é exigente. Vive falando dos clássicos. Assim, quando vocês estiverem na livraria, não vale a pena perder seu tempo nas prateleiras de crimes reais, por exemplo. Mostre o seu patriotismo olhando com mais vagar para a seção de literatura brasileira. Se você quiser apostar suas fichas na poesia, pegue um livro de Manuel Bandeira, de preferência “Libertinagem”, e comente: a poesia de Manuel Bandeira é matreira; fácil de ler, mas o trabalho dos bastidores foi imenso. Ou pegue uma antologia de João Cabral de Melo Neto e diga que ele foi revolucionário ao contestar, em seu cerne, o que normalmente se entende por poesia.

Agora, se você preferir a prosa brasileira, uma boa pedida é escolher um livro de Rubem Fonseca e discorrer a respeito dos aspectos cinematográficos do texto. Se quiser dar mais uma volta no parafuso, pode dizer, com voz firme: o romance “Agosto” é o grande romance político da literatura brasileira.

Imagine que você está empolgado depois do passeio pela literatura brasileira e resolve dobrar a aposta. Hora de visitar a literatura estrangeira. Banque o pedante e torça o nariz para a poesia estrangeira. Diga que a poesia é intraduzível. Na parte da prosa, procure os russos. Não tem erro com os russos. Pegue um livro de contos de Tchékhov e diga: as pessoas acham que os contos de Tchékhov são sempre delicados; é que elas não leram muitas das narrativas da maturidade do autor; há ali uma visão impiedosa da vida humana. Ou pegue um romance de Dostoiévski e diga: quase sempre as primeiras páginas dos seus romances mais sombrios são engraçadas.

Por enquanto, está de bom tamanho. Como você está dando os primeiros passos, eu faria os comentários em pé, para não correr o risco de a conversa tomar caminhos imprevistos e constrangedores. Solte suas pérolas e depois vá falando de outros assuntos. Um dia de cada vez.

Espero ter sido útil.

nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com