Recaída

Seria isso ou escrever a surrada crônica sobre a dificuldade de escrever uma crônica

Por Cruzeiro do Sul

Escrever semanalmente não é tarefa das mais tranquilas. Não carrega o desafio de uma cirurgia de alta complexidade ou a responsabilidade de uma decisão judicial, mas tem lá seus obstáculos. O grande drama da coluna semanal é que o ser humano é terrivelmente instável.

Nos últimos tempos, o tema da coluna vinha aparecendo uns três dias antes de enviar o texto ao jornal. Nesse intervalo, eu ia me divertindo, pensando na crônica no trânsito, na padaria, na academia, vendo televisão. No momento certo, bastava sentar diante do computador para a coisa correr tranquilamente.

Sem contar que o resultado vinha saindo mais do meu agrado. Eram textos mais verticais, mais encadeados, mais seguidores dos bons preceitos da retórica. Não vou mentir para vocês: eu ficava moderadamente orgulhoso. Acho que não é pecado.

Quando aparece a maré boa, acreditamos que ela é definitiva. Triste ilusão. Falo por mim, claro. Depois de semanas amenas, centradas, disciplinadas, o mosquito da dispersão apareceu todo pimpão. Não de repente, dando susto. Foi primeiro, digamos, um zumbido. Depois o bicho apareceu. Estou falando metaforicamente, claro. Sempre é bom deixar registrado.

Pois bem. Tudo parecia correr mansamente. O João Pedro estava pedindo para ver uns desenhinhos na televisão. E lá estava procurando os benditos no YouTube. Quem escreve crônica vive em busca de sarna pra se coçar. Qualquer coisa pode ser desenvolvida no texto. Há quem veja isso como talento. São os otimistas. Os azedos cravam: é enrolação.

Digo isso porque, diante da televisão, junto com o João Pedro, senti que o assunto da próxima coluna estava chegando. Seria um texto sobre a abundância de opções de entretenimento à disposição da criançada de hoje. Registrei a ideia e esperei que, nos dias seguintes, a coisa fosse ganhando corpo.

Só que não vingou. Bem que eu tentei, mas daquele mato não saiu um mísero cachorro. Achei melhor não insistir. Desisti, mas não com ânimo pessimista. Ser adulto é lidar com as adversidades com a cabeça erguida. Meu otimismo apontava: fique tranquilo, logo mais outra ideia aparece reluzente.

E fui tocando o barco. Ontem, na academia, ouvindo um podcast sobre uma prática que é puro charlatanismo e que vem sendo bastante difundida, pensei: escreverei um texto mais incisivo sobre essa palhaçada. Mas a coisa também não vingou. Gosto de sossego, e sei que o que eu estava planejando poderia angariar uma reação daquelas bem aborrecidas.

Pensei: otimismo tem limites. Ficou evidente que a crônica desta semana seria horizontal, sem fôlego para ir mais a fundo em qualquer assunto. Nessas horas mais desesperadas, parece que tenho uma carta na manga: dicas de leitura. Cogitei fazer isso com vocês hoje. Eu pensaria nos livros lidos recentemente e diria se valeria ou não a pena lê-los. Seria isso ou escrever a surrada crônica sobre a dificuldade de escrever uma crônica. A crônica sobre a dificuldade de escrever a crônica é mais velha que andar pra frente.

Reconheço isso, mas acho mais honesto do que mostrar empolgação missionária com os livros lidos recentemente. Até porque eles não eram lá essas coisas. Sei lá, a gente vai entrando numa fase mais depurada da vida; a gente evita gastar o latim com coisa insípida.

Optei por me expor dessa forma. Melhor uma amargurazinha assumida do que uma euforia meio maníaca. Pode ser que na semana que vem as coisas entrem no eixo novamente. Ou não.

nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com