Rubem Fonseca
Quem não volta, de quando em quando, a músicas que mexem com o coração?
Certamente os leitores conhecem a pergunta: qual livro você levaria para uma ilha deserta? Eu levaria os “Contos reunidos”, de Rubem Fonseca, publicado em 1994 pela Companhia das Letras. Capa dura, preta, sem firulas, sem ilustrações.
A diagramação de um livro é importante? Correndo o risco de soar como preciosismo, afirmo que é muito importante. Letras encavaladas, reunidas em linhas estreitas, tendem a transformar a leitura em algo cansativo. Eu digo isso porque o livro de Rubem Fonseca não tem diagramação arejada. Em condições normais, eu reclamaria. Mas aí entra a nostalgia, e vocês sabem que a nostalgia é algo deveras poderoso.
Não reclamo da diagramação dos contos de Rubem Fonseca porque foi a partir desse suporte que eu li, pela primeira vez, os textos que mudaram dramaticamente a maneira como eu encaro a literatura. Precisamos voltar ao mês de dezembro de 1995.
Eu tinha acabado de completar 18 anos. Já lia bastante, mas ainda tinha uma visão meio torta da literatura. Acho que todo leitor apaixonado passa por isso. É a concepção beletrista do texto literário. Simples de entender: é a convicção de que quanto mais enfeitado o texto, melhor. Infelizmente muita gente não se libertou dessa maldição. Não que o texto rebuscado seja necessariamente ruim. Os grandes autores do Barroco são exemplares. O problema é achar que a coisa toda sempre deve ser opulenta.
Como eu dizia, era dezembro, 1995, poucos dias antes do Natal. Eu estava no Shopping Esplanada. Eu e metade de Sorocaba, a julgar pelos corredores abarrotados e pelas disputas ferozes por vagas no estacionamento. Naquela época, eu frequentava a livraria do meu amigo Fábio.
Num rompante consumista, comprei os contos reunidos do Rubem Fonseca e do Moacyr Scliar. Saí da livraria e, milagre dos milagres, encontrei um banco livre para sentar-me, num dos corredores do shopping. Abri o livro do Rubem Fonseca, esse mesmo que agora estou relendo pela, sei lá, centésima vez. Não quero que este relato seja marcado pelo exagero, e é por isso que digo o seguinte: eu já tinha ouvido falar de Rubem Fonseca em 1995. Acho que foi num programa de televisão. Pode ter sido num artigo de jornal. Eu realmente não me lembro. A memória gosta de pregar suas peças.
Chamar de “dom” é exagero, mas consigo ler com muito barulho em volta. Então, lá no shopping, em 1995, eu li alguns dos contos do livro que eu tinha acabado de comprar. Chamar de “iluminação” o que aconteceu comigo no meio daquela balbúrdia não é exagero. Comecei com “A força humana”, que abre o livro “A coleira do cão”. O conto, em primeira pessoa, conta as agruras de um marombeiro no Rio de Janeiro. O argumento, por si só, já é inusitado; mas o que me pegou de jeito foi a linguagem franca, agressiva e poética de Rubem Fonseca. Aquele casamento da forma com o conteúdo mostrou que era possível escrever maravilhosamente bem sobre a cidade, sobre a realidade brasileira, sobre gente com quem trombamos a cada dois ou três passos. Para mim, aos 18 anos, foi libertador.
Lá se vão quase trinta anos relendo o que Rubem Fonseca escreveu. Dias atrás, voltei a “Agosto”, romance político em que Rubem Fonseca esquadrinha os dias que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas. Não voltei ao livro por conta da memória falha. De tanto que eu o li, decorei trechos inteiros. Então por que voltei a ele? Porque, para mim, alguns livros atingiram o patamar da música. Quem não volta, de quando em quando, a músicas que mexem com o coração?
Rubem Fonseca escreveu livros assim. Vários deles, não todos, eu encaro como música. Não estou dizendo aqui que Rubem Fonseca é o maior autor de todos os tempos. Literatura não é campeonato. De todo modo, inegavelmente, Rubem Fonseca vem sendo um grande companheiro de jornada.