A face
Não faz muito tempo que essa tecnologia que nos obriga a encaixar o rosto no retangulozinho de uma tela era assunto de ficção científica
Estou diante do espelho. Gasto um bom tempo reparando no meu rosto. Crise da idade? Lamentando rugas e linhas de expressão? Meditação a respeito do tempo fugaz? Antes fosse. Isso faria de mim um sujeito mais sofisticado. O homem que passa a vida a limpo antes de mais um dia. Só que estou diante do espelho por um motivo bem mais besta: quero entender por qual razão meu rosto não se dá bem com máquinas de reconhecimento facial.
Coisa de poucos anos atrás, a combinação de Ninho com Nutella tomou de assalto o mundo das sobremesas. Hoje vocês conhecem o cenário. Impossível conceber a sociedade sem a tão famosa combinação. Talvez algo parecido tenha ocorrido com a tétrica identificação facial.
Não faz muito tempo que essa tecnologia que nos obriga a encaixar o rosto no retangulozinho de uma tela era assunto de ficção científica ou de notícias alarmantes. De um dia para outro, entrou nas nossas vidas. Ninguém imagina seu cotidiano atualmente sem a identificação facial.
Uso óculos e sou meio ingênuo quando a discussão gira em torno de traquitanas tecnológicas. Digo isso porque, quando preciso passar pela maldição do cadastro do reconhecimento facial, não sei se tiro a foto com ou sem óculos. De uma coisa eu tenho certeza: nunca dá certo.
Todas as vezes tive de passar por todos os círculos do inferno do cadastro. Foto, nome completo, CPF, RG, endereço de e-mail, telefone. Mando tudo isso a quem de direito, recebo uma mensagem dizendo que está tudo certo, e toco a vida. Dizem que o cadastro enrolado é assim por um bom motivo: questão de segurança. Doravante é só parar uns segundos diante do aparelho de reconhecimento facial e todas as portas se abrirão instantaneamente.
Eu não aprendo mesmo. Minha ingenuidade é invencível. Caí na conversa de que a internet seria a maravilha do conhecimento. Caí na conversa de que as redes sociais só serviriam para matar a saudade dos amigos e parentes que moram longe. Achei mesmo que os canais de TV a cabo nos livrariam dos comerciais que interrompiam os filmes. Eu estava convicto de que aquela avenida inaugurada daria conta de uma vez por todas dos engarrafamentos.
Vai ver sou apenas um cara sem sorte, mas nunca tive minha face reconhecida pelo aparelho de identificação facial. Sempre tive de lidar com a negativa. “Usuário não cadastrado”. Entro em contato com a central de operações. Todas as vezes sou atendido com gentileza. Digo o que está acontecendo. A pessoa do outro lado da linha verifica se o meu cadastro está em ordem. Está. Então ouço o seguinte, sempre dito com uma certa perplexidade: “isso não era para ter acontecido”.
O tal “isso não era para ter acontecido” me derruba. Não que eu fique furioso, longe disso. É algo mais profundo. Minha grande dúvida: o mundo está macabramente incompetente ou eu carrego algum estigma? É que eu já ouvi o “isso não era para ter acontecido” em outros contextos também. Não sei se já aconteceu com vocês, mas não é algo muito alentador de se receber. Principalmente quando o seu carro se recusa a ligar, a pessoa que você chamou pelo aplicativo do seguro troca a bateria, você pensa “ufa, até que não foi tão terrível assim!”, entra no carro, tenta dar a partida, e nada. Você sai novamente, olha implorando para o socorrista do seguro em busca de uma explicação plausível e tranquilizadora e ouve um “isso não era para ter acontecido”. Fica parecendo uma conspiração cósmica, sei lá.
Aí vocês vão vendo que viver em 2023 não é tão tranquilo assim. Feliz Natal.