A sabedoria em pílulas

Por Cruzeiro do Sul

Muitas foram as invenções da humanidade para tornar a vida mais difícil. O panetone de calabresa. A pizza de arroz doce. A caixa de som minúscula e potente. O rojão. A ala vip. A moto. A lista é vasta. Mas nada supera as redes sociais.

Lá no começo de tudo, a gente acreditava: oba, vou conseguir conversar com pessoas queridas que moram muito longe. Depois deu no que deu. Saudade dos vídeos engraçados que mostravam as peripécias dos gatinhos.

Tenho perfil no Facebook e no Instagram. Publico muito pouco. Até cheguei a fazer umas graças tempos atrás no Facebook. Foi divertido enquanto durou. Enjoei sem grandes explicações. Hoje tenho os perfis e só fico vendo o que outras pessoas publicam.

Meu lado simpático fica feliz quando topo com fotografias de pessoas que não vejo há bastante tempo. É uma forma de matar a saudade. Meu lado simpático também fica feliz quando me deparo com algo legal que acontece com pessoas queridas. Até aí, vou levando bem.

A coisa começa a enroscar com os vídeos de gente dando dica de tudo quanto é coisa. Isso não acontece tanto no Facebook. O inferno é no Instagram. Lá no Instagram os algoritmos trabalham no modo pesadelo. Dia desses, enquanto rolava a tela, gastei uns segundos vendo um vídeo sobre tênis de corrida. Foi o que bastou para, nos dias seguintes, eu ser soterrado por referências a maratonas e treinos de musculação para corredores.

Mas tudo pode piorar. Sim, porque não é tão ruim assim, se você se interessa por exercício físico, ver como se faz corretamente determinado alongamento. É meio cansativo receber dezenas de vídeos sobre alongamento, mas dá para encarar. Nessas horas, o Instagram parece aquela pessoa que, ao perceber que você gosta de algo, tenta ser simpática e só falar a respeito do que você gosta. Aborrece um pouco depois de um tempo, mas a gente reconhece a boa vontade da pessoa.

O drama, ao menos para mim, está nos vídeos de pessoas que resolveram ganhar um troco dando conselhos para a humanidade sobre como levar a vida do jeito certo. Tem de tudo um pouco nesse show de horrores.

Há os sábios que aconselham os pais sobre o perigo das telas para as crianças. Aqui, os gurus adotam expressões carregadas e mencionam números horripilantes. Falam de consequências estarrecedoras. Muitos defendem que as crianças não podem ter contato com celular ou com televisão. Pais e responsáveis tendem a ficar arrasados depois que assistem a esses vídeos. Antes que as pedras comecem a voar: sei que ficar muito tempo diante do celular ou da televisão não é um bom negócio.

Minha implicância é com a falinha radical que transforma pais que mostram desenhinhos animados aos filhos em seres inescrupulosos, preguiçosos.

Há os sábios que mostram o que fazer nas férias escolares. Construir brinquedos engenhosos a partir de um barbante e uma garrafa de plástico. Brincar de sei lá o quê no parquinho. Ir à fazendinha e ver as frutinhas na árvore, o bezerro, a vaquinha, o porquinho. Tirar o tênis e sentir o pé na grama. Se resolvermos tirar os tênis do João enquanto passeamos pelos bucólicos parques da cidade, merecemos um puxão de orelha de algum conselheiro tutelar. Não acho que será uma experiência enriquecedora para o João se ele pisar num caco de garrafa da Heinecken, ou num prego meio maroto, ou num saquinho de Ebicen. Normalmente os sábios dos vídeos das férias escolares esbanjam sorrisos e olhares carinhosos. Entendo: estão rindo dos trouxas que acreditam em suas melífluas dicas.

E assim se arrasta a humanidade. Bom 2024 para vocês.

nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com