Noite branca

Por Cruzeiro do Sul

Ontem eu acordei de madrugada para fazer xixi e aproveitei para dar uma olhadinha no João Pedro no quarto dele. As madrugadas dos últimos dias estão mais quentes. O João estava enrolado no edredom parecendo um charuto. Ele é calorento e eu pensei que logo mais ele acordaria incomodado. Eu poderia tentar tirar o edredom de lá, mas o João poderia estranhar aquela movimentação. Achei melhor voltar para meu quarto. Nessas horas eu não consigo dormir rápido. A Patrícia consegue.

Decidi esperar alguns minutos para ver o que dava. Mas de madrugada o tempo funciona desengonçado. Você acha que passaram alguns minutos e vai ver ficou quase uma hora e meia de bobeira. O João continuou dormindo pesado. A Patrícia estava mergulhada no sono fundo. Bem que eu tentei dormir de novo. Percebi que não seria fácil.

Admiro os que usam a insônia produtivamente. O sujeito não prega os olhos e vai ler alguma coisa respeitável. Ou escreve páginas imortais. Ou adianta alguma papelada do trabalho. Ou vai ver um filmaço na sala. Não sou desses. Brigo com a insônia deitado mesmo. Poucos movimentos. Melhor não dar sopa pro azar. Sem contar que a Patrícia não merece acordar porque a corujona aqui está a mil.

Se alguém entrar no meu quarto nessas horas e olhar para mim vai achar que estou dormindo muito bem. Eu aproveito para pensar bobagens. Pensar bobagens de madrugada é bem diferente de pensar bobagens durante o dia. As madrugadas são meio delirantes. Pelo menos é o que acontece comigo.

Eu quase sempre aproveito para retomar algumas coisas do passado mais distante ou para criar histórias que podem aparecer num conto. Muito provavelmente não aparecerão porque tenho me contentado com o que a imaginação me oferece. Antes eu ficava chateado por não transformar o que passava na minha cabeça em histórias. Agora eu aceito numa boa as coisas como elas são.

Passei alguns anos desejando escrever um livro de contos. Claro que nessas horas a gente vai incluindo fama, reconhecimento, resenhas elogiosas, entrevistas lapidares. A vontade passou depois que eu trabalhei um tempo numa editora grande de São Paulo. Foi uma experiência interessantíssima. O problema é que a gente fica conhecendo os bastidores. A idealização esfarela. Você acaba fincando os dois pés no chão.

Abandonei as metas literárias, mas não abro mão do processo criativo. É um treco que vicia. Ajuda a gente a lidar com o tédio. Dá uma mãozinha nas horas mais embaçadas. E o principal: é uma baita diversão. Sempre levarei isso comigo.

Na insônia mais recente eu peguei a história de vida de uma figura aqui da cidade e fui escrevendo mentalmente versões do enredo. Como a coisa ficaria caso fosse escrita sob a influência de Hemingway. Depois sob a influência de Faulkner. Depois sob a influência de Machado de Assis. Depois sob a influência de Gógol. Depois sob a influência de Guimarães Rosa. A cabeça fervendo e o corpo parecendo o de uma múmia impassível.

Não sei quanto tempo passei nessa firula. Evito ver as horas quando acordo de madrugada. Principalmente quando a manhã que se avizinha é cheia de aulas. Ver que horas são é pedir de joelhos para a ansiedade aparecer toda lépida. Só sei que no meio da última maluquice percebi a Patrícia levantando. Sinal de que a manhã estava surgindo.

É assim que vamos tocando a pipa por aqui.