Livros de família registram mais do que histórias
Há quem diga que toda vida bem vivida rende um bom livro. Imagina, então, que obra pode render a história de várias gerações de uma mesma família? Recheada de relatos emocionantes, em capítulos que abordam a saga da imigração, as perdas e recomeços, os desafios e as proezas da prole, os livros de família ajudam remontar a árvore genealógica e a perpetuar parte da história dos próprios autores.
Este tipo de narrativa não-ficcional já representa uma fatia importante do mercado editorial brasileiro. Proprietária da editora Crearte, de Sorocaba, Miriam do Carmo Rangel já publicou pelo menos dez títulos que contam a história das famílias dos próprios autores e acredita que esse nicho tende a crescer ainda mais nos próximos anos. “Creio que a tendência é esse mercado se abrir ainda mais no Brasil porque as pessoas estão cada vez mais interessadas em se aprofundar na sua história e saber a origem, para entender quem ele é”, afirma.
O número exato de livros de família publicados no País é incerto, já que, a rigor, a ficha catalográfica elaborada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) classifica esse tipo de obra como “biografia”. Além disso, boa parte dos livros de família sequer chega às prateleiras das livrarias, pois é distribuído entre os próprios parentes.
É o caso da professora de inglês Clélia Maria Ferreira Leonetti, de 67 anos, que depois de se aposentar decidiu escrever a história de seus avós maternos, os Veronezi Papa, com intuito de distribuir apenas entre os entes queridos. “O livro não teve o foco comercial. Foi mesmo com o objetivo de resgatar e preservar a história da família”, comenta. Intitulado “Uma vida, um sonho, uma partida”, o livro foi publicado em 2014, no ano de centenário da chegada da família ao Brasil, com direito à tarde de autógrafo na Biblioteca Municipal Jorge Guilherme Senger, e teve cerca de 100 cópias distribuídas aos parentes.
Histórias da avó
Clélia detalha que, desde criança ouvia com atenção as histórias contadas pela “nona”, a avó que deixou a Itália em 1914 para recomeçar a vida no Brasil. Diante das dificuldades enfrentadas durante a 1ª Guerra Mundial, os avós -- trazendo quatro filhos, sendo que deles nasceu no navio -- decidiram deixar a província de Rovigo, na região do Vêneto, no nordeste da Itália, para começar uma vida nova em solo brasileiro. Antes de se estabelecerem em Sorocaba, trabalharam em uma fazenda de café em São Manuel, na região de Botucatu.
Além da recordação dos relatos da avó, Clélia reuniu uma série de documentos e inclusive conseguiu no Memorial do Imigrante uma cópia do registro de entrada da família no país. A obra também é enriquecida por cartas trocadas pela avó de Clélia com a irmã, que ficou na Itália datadas de 1930; poemas escritos por Lina Reale, uma prima que vive em Rovigo que em 27 de maio deste ano completou 100 anos e até mesmo uma receita de crostoli, uma sobremesa feita de massa açucarada, que até então guardada a sete chaves pela família.
A autora comenta que após a publicação do livro continuou pesquisando e reunindo materiais que ajudam a contar a história de sua família. “Agora a minha ideia é fazer um blog para compartilhar os documentos tudo que eu tenho, talvez possa interessar e ajudar outras pessoas a descobrir um pouco da sua história”, assinala.
Sete anos de pesquisas
Descendente de espanhóis, o ferroviário aposentado Chercy Gimenez, 80 anos, também tomou a iniciativa de pesquisar e publicar um livro sobre os seus ancestrais. Em 2006 ele publicou o livro “Família Gimenez”, que nos anos seguintes ganharia edições revisadas e atualizadas. Escrito em parceria com o filho Denis, narrador da história, a obra é resultado de sete anos de pesquisa que chegou até o seu hexavô, nascido em 1763. “Fomos até onde foi possível”, comenta Chercy Gimenez. Encadernado em capa dura, o livro de cerca de 90 páginas conta com fac simile de documentos históricos da família, transcrições de cartas e até o brasão da família. “É emocionante olhar para nossa própria história”, admite Chercy.
Para percorrer este caminho longo, pai e filho lançaram mão de todos os recursos disponíveis, como redes sociais, registros de batismo e casamentos de igreja e até visita a Bubion, cidade de origem de Antonio, avô de Chercy, que desembarcou no Brasil 1894, primeiro para trabalhar em uma fazenda em Botucatu e depois nas obras da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) -- o que acabaria trazendo a família para Sorocaba. “Meu avô, meu pai, eu e vários parentes fomos todos ferroviários”, detalha Chercy. Aliás, a investigação sobre a ligação da família com a EFS acabou dando origem a outro livro, de Denis, intitulado “Minha família ferroviária”.
Segundo os autores de ascendência espanhola, os exemplares físicos foram distribuídos aos entes mais próximos -- os avós de Chercy tiveram 12 filhos e 48 netos -- com intuito de perpetuar as lembranças da família que o levam ao passado, mas o autor faz questão de disponibilizar o exemplar, em mídia on-line, a todos os parentes que o queiram. “Legamos aqui, às futuras gerações, quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Caberá àqueles que virão a continuidade dos nossos esforços”, pontuam os autores, na abertura do livro.
Obra foi feita sob encomenda
O jornalista e empresário Osvaldo Ciasulli, de 77 anos, reconhece que teria condições de escrever o livro da sua família, mas preferiu delegar essa tarefa à escritora profissional Keila Prado Costa, mestra em literatura que possui uma empresa de consultoria de projetos estratégicos e editoriais com outros livros de família em seu portifólio. “Decidi contratar a Keila para manter a neutralidade da história, porque família é paixão”, afirma.
Intitulado “Família Ciasulli -- Da Itália ao Brasil”, o livro lançado em 2017 tem 244 páginas é recheado de mapas, brasões, bandeiras, certidões e retratos antigos que ilustram a história da família, desde a chegada dos imigrantes italianos, que vieram da província de Foggia, na Itália, até sua consolidação na comunicação. A família é proprietária de uma revista voltada ao agronegócio.
Além da história familiar, a obra é contextualizada por fatos históricos, como a promessa de um futuro no Brasil e a crise da bolsa de valores em 1929. Ciasulli relata que a ideia de publicar o livro surgiu depois de uma visita que fez com o filho a cidade de Polvino, local de origem de seu bisavô que, casado e com um filho de cinco anos, desembarcou no Brasil para trabalhar nas fazendas de café na região de Ribeirão Preto. “Visitamos o museu [da cidade] e na saída assinamos o livro de visitas. Quando o porteiro viu [o sobrenome], ele deu um grito. Chamou para outras pessoas [da família] que acabaram nos hospedando, dando almoço e janta, como se fôssemos membros da família”, relata. Mesmo tendo sido feito por uma escritora profissional, o livro levou dois anos para ser concluído. Ciasulli comenta que o projeto, que teve tiragem de 1 mil exemplares, custou cerca de R$ 30 mil e foi custeada com um rateio entre todos os membros da família que se reuniram em um churrasco para fornecer documentos e dar depoimentos à autora.
Miriam, a proprietária de uma editora da cidade, comenta que atualmente é possível publicar o livro de família a valores mais modestos, por meio de impressão digital feita por demanda. Segundo ela, a publicação de cem unidades, no tamanho 15cm x 21cm, varia entre R$ 600 a R$ 1 mil dependendo do número de páginas, e inclui diagramação e confecção da ficha catalográfica e ISBN (sigla inglesa para Padrão Internacional de Numeração de Livro), número obrigatório para a venda de livros no país. “Muita gente tem interesse de escrever a história da própria família e alguns até escrevem, mas acabam engavetando. Publicar o livro é uma forma de preservar a história. Nesse caso, a própria história”, defende. (Felipe Shikama)