A mulher da sala de espera
Carlos Araújo - carlos.araujo@jornalcruzeiro.com.br
O lugar é a sala de espera de uma clínica médica e a consulta com o cardiologista está marcada para às 10h desta sexta-feira de inverno. Chego quinze minutos antes. Como habitualmente, presumindo que a espera será longa, abro um livro -- “Escrever ficção”, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Nesse instante entra uma idosa que se dirige à recepção com dificuldade, auxiliada por duas pessoas. Uma mulher que está sentada ao meu lado guarda o material de tricô numa sacola. E voltando-se para mim, ela compara:
-- Não são só pessoas mais velhas que vivem a dificuldade de andar; eu também.
Ainda não iniciei a leitura porque continuo a observar a idosa.
A mulher que desiste do tricô e está sentada ao lado aparenta 40 anos ou menos. Numa sequência, sem que eu pergunte nada, ela emenda o comentário sobre a idosa com outros assuntos. Embora seja bem mais nova, também já enfrenta limitações para caminhar. Descreve os antecedentes, as peregrinações clínicas e o diagnóstico de uma doença na perna.
Eu continuo com o livro aberto na página interrompida em momento anterior de leitura. Mantenho os olhos voltados para o lado direito, atentos ao que a mulher fala. Seria falta de educação ignorar o que ela diz e mergulhar nas páginas do livro. Ela não para de falar e eu respondo com monossílabos:
-- Sim... ahhh... veja bem...
A mulher de repente muda de assunto e começa a falar dos filhos, dos vizinhos, dos irmãos. Conta que tem uma filha de 20 anos que cursou administração e não consegue emprego porque não tem experiência na área.
-- Para ter experiência, ela precisa ter a chance de trabalhar -- protesta.
Fala de outras pessoas, mas pouco diz de si. É de Feira de Santana, na Bahia, e fala de uma fábrica de sabonete existente lá.
Agora, ela reclama de comportamentos de pessoas que instauram a falta de confiança universal. Como exemplo, cita um flagrante que viu no terminal de ônibus. Três amigas conversavam, cada uma com suas bolsas. E eis que viu uma delas roubar a bolsa da outra sem que a vítima e nem a terceira mulher percebessem.
-- Eu vi aquele absurdo, pensei em gritar, mas não posso nem correr por causa da minha perna. Preferi ficar em silêncio e me senti muito mal, como se me sentisse cúmplice de um crime. Veja só: três amigas. E uma sorria para a outra como se nada estivesse acontecendo.
E eu ainda mantenho o livro aberto nas mãos, olhando para a mulher falante, reagindo com os tais monossílabos.
Não olho para o relógio porque quero esquecer do tempo. Minha atenção se divide entre a fala da mulher e os chamados do médico. Corro o risco de não ouvir porque a mulher me desconcentra. Calculo que já se passaram trinta minutos. É quando ela se toca:
-- Estou te atrapalhando, né?
-- Não, não, imagina -- eu respondo.
Ela quer saber que livro estou lendo -- digo, tentando ler --, eu mostro a capa e ela pergunta se gosto de ficção. Só então falo uma frase inteira:
-- A ficção se funde com a realidade e de repente a gente não sabe onde termina uma e começa a outra.
A mulher continua a desenrolar o novelo de narrativas sobre os casos mais diferentes e as impressões mais delirantes da vida e do cotidiano. Quando começa a falar da Previdência, o tema agora é a política. Isso estimula um outro homem da sala de espera a entrar na conversa. Aí o diálogo vira debate.
Uma ou duas vezes, agora convencido de que não vou mesmo conseguir ler coisa nenhuma, entro na conversa mais por tabela do que por consciência. Ouço com indiferença o homem que acaba de entrar na conversa dizer que a ditadura militar não existiu. E eu, que não acredito em mais nada, confirmo, sem disfarçar a ironia:
-- A ditadura foi uma invenção dos comunistas.
Mais meia hora se passa nesse ritmo duvidoso. A mulher só para de falar quando ouve o seu nome ser chamado pelo médico. Dez minutos depois, ao sair do consultório, ela ainda não se dá por satisfeita e complementa uma ideia interrompida antes:
-- A diretora da escola chamou a minha filha para dizer que ela tinha um comportamento tímido demais, mas a psicóloga falou que isso é normal, não há motivo de preocupação.
Ela se despede com um “tchau” e a sala de espera volta ao silêncio. Nesse momento, quando penso que posso finalmente iniciar a leitura, ouço o médico chamar o meu nome e então fecho o livro.