Marco Nanini revê sucessos e amores em biografia
Fruto de quatro anos de pesquisa, entre entrevistas e consultas a documentos, a obra tem a qualidade de não se limitar a retratar a vida profissional de um dos principais artistas brasileiros
O avesso de um bordado, mesmo oculto por detrás do pano, traz significados que ajudam a entender melhor o próprio trabalho. Foi tal raciocínio que levou a escritora e jornalista Mariana Filgueiras a titular de O Avesso do Bordado a biografia do ator Marco Nanini, lançada agora pela Companhia das Letras. Fruto de quatro anos de pesquisa, entre entrevistas e consultas a documentos, a obra tem a qualidade de não se limitar a retratar a vida profissional de um dos principais artistas brasileiros, mas também a de revelar histórias íntimas e contextualizar o ambiente onde cada fato aconteceu.
Afinal, a trajetória de Nanini se confunde com a própria história da cena brasileira desde 1965, quando ele pisou em um palco pela primeira vez. "Nanini foi formado por gênios do teatro clássico, experimentou todas as linguagens e gêneros ligados à dramaturgia", conta ela, relatando que o ator participou de mais de 100 produções, passou pelo teatro clássico e moderno, pelo teatro político e de vanguarda e pelos musicais.
E, tal qual o avesso de um bordado, o livro traz informações pessoais e pouco conhecidas sobre o homem que, quando chega em casa, deixa para fora a persona pública - os namoros (de Marília Pêra a Wolf Maya), as grandes amizades (como Pedro Paulo Rangel e Camila Amado), uma inusitada cumplicidade (com Renato Russo) e ainda a família (seu pai Dante o inspirou na criação de Lineu, de A Grande Família, tanto na correção de caráter como no uso do cinto acima da barriga).
Há espaço também para relembrar a dependência de Mandrix, droga comum nos anos 1970 (e proibida na década seguinte) que, ao se associar ao álcool, provocava um verdadeiro transe. Nanini abandonou o sedativo quando, sob seu efeito, desmaiou enquanto dirigia, quase provocando a própria morte.
"Havia muita história que eu mesmo não lembrava mais", diverte-se Nanini, em conversa com o Estadão. "E, ainda que muita coisa ainda cause estranhamento, sei que não tenho nada a perder." Próximo dos 75 anos (completa em 31 de maio), Nanini construiu uma carreira cuja excelência encontra poucos exemplos na história da arte dramática brasileira. Como observou Mariângela Alves de Lima, em crítica publicada no Estadão em 2011, "ele ultrapassa em larga medida a categoria de excelência profissional implícita em 'bons intérpretes'".
Talento
Nascido em 1948 no Recife, Nanini viveu ainda em Manaus e Belo Horizonte (graças à função do pai, gerente de hotéis) até se fixar no Rio de Janeiro, onde estreou como ator em 1965, na peça infantil O Bruxo e a Rainha. O talento inato o levou ao Conservatório Nacional do Teatro, onde começou a lapidar suas inúmeras qualidades.
A aprendizagem coincidiu com a fase mais repressiva da ditadura militar. "Os anos 1960 e 70 foram de muito sufoco. Todo dia, acontecia algo, a gente não podia ver uma farda sem ter medo", relembra Nanini, que forjou seu talento na época a partir da convivência com artistas como Milton Carneiro, Dercy Gonçalves e Afonso Stuart, especialmente com a humorista. "Dercy tinha o sentido da comédia, o tempo do humor, a escolha certeira dos textos", comenta. "E era muito briguenta, como quando xingou, durante uma apresentação, um censor que estava na plateia para acompanhar se o texto era dito na íntegra, quando Dercy era a rainha do improviso."
Outro nome essencial à lista é o de Marília Pêra (1943-2015), com quem Nanini talvez tenha mais se aproximado artisticamente. "O encontro artístico dessa dupla foi, de fato, explosivo. Uma harmonia notável, uma química perfeita, em palco, na TV, na vida privada. Tão intensa que não resistiu a vida inteira", comenta Mariana, referindo-se ao enceramento da amizade depois de desentendimento por causa de O Mistério de Irma Vap, peça que bateu recorde de permanência em cartaz, entre 1986 e 96 - Nanini não aceitou uma proposta de Marília de substituí-lo em cena (ela dirigia o espetáculo) quando ele descobriu um nódulo nas cordas vocais.
Depois de muita discussão, encerraram a sociedade (da qual também fazia parte o ator Ney Latorraca) e, pior, a amizade. "Foi um encontro artístico único, que acabou por um desentendimento fatal", resume ele.
Habitualmente reservado, Nanini conta histórias de seus amores no livro, tanto uma relação com Marília, como com outros homens, como com o diretor Wolf Maya, nos anos 1970 - hoje, mantém há 36 anos um relacionamento com o produtor e diretor Fernando Libonati. Fez a revelação sobre o assunto em 2011, à revista Bravo. "Eu tinha de dar um jeito de expor minha sexualidade, não podia ficar escondendo: primeiro, foi para meus pais; depois, de forma mais aberta." (Estadão Conteúdo)