A biblioteca minimalista de Leandro Karnal
Historiador sempre foi leitor voraz, mas doou grande parte de seus livros e defende circulação das obras
Historiador, professor, palestrante requisitado, membro da Academia Paulista de Letras, escritor (ele está lançando “Preconceito: Uma História”) e colunista, Leandro Karnal sempre foi um leitor voraz -- e é fácil imaginar a sala de seu espaçoso apartamento nos Jardins toda tomada por livros. Ou pensar que ao menos um dos cômodos guarda, em prateleiras do chão até o teto, em um ambiente com luz acolhedora e uma confortável poltrona de leitura, seus tesouros literários, os livros que ele já leu e os que ainda quer ler. Mas quase não há livros na casa de Karnal.
Não há porque ele não acredita mais que a posse do livro signifique alguma coisa importante -- já acreditou, e sua casa, tempos atrás, poderia ser confundida com um sebo, com livros até embaixo da cama e no banheiro, e com nada menos do que 17 dicionários da língua portuguesa e 30 diferentes bíblias. Também porque ele tem rinite alérgica. E porque cruzaram por seu caminho pessoas e projetos que fariam um novo -- e melhor -- uso daquela sua “biblioteca morta” (morta, porém renovada diariamente com a chegada das remessas das editoras que esperam, um dia, ver suas obras em algum texto dele).
“Nos últimos 15 anos, estou desapegado da posse do livro e, curiosamente, estou lendo mais do que nunca”, contou à reportagem numa manhã de final de novembro, em sua, agora, diminuta biblioteca.
Os livros de História da América, acumulados desde a pós-graduação e tão importantes para a sua formação e para seu dia a dia como professor, foram para seu substituto na Unicamp, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (com quem assina seu novo livro sobre preconceito), quando ele pediu exoneração. Karnal sabia que não voltaria a produzir nesta área
O resto, algo como 3 mil exemplares de filosofia à ficção passando pelas tiras de Mafalda, ele doou para um presídio em Pinheiros, por causa do projeto de remição de pena pela leitura, e também para os meninos e meninas da Fundação Casa.
“O único livro, na minha vida, que eu doei e me arrependi - e doei porque achei que seria muito útil no presídio --, foi o Dicionário Houaiss. Era aquela primeira versão encadernada e costurada à mão, acho que feita na Espanha. Eu era estudante quando comprei e foi caríssimo. Tem on-line, mas às vezes sinto vontade de folheá-lo rapidamente”. Ele, que disse não escrever um parágrafo sequer sem consultar um dicionário, deve comprar uma nova edição do Houaiss, embora ainda tenha outros três dicionários (dos 17 que já teve) em casa. E como escreve muito sobre religiões, guardou 10 bíblias.
E o que restou? O que forma, hoje, a biblioteca de Leandro Karnal? O essencial, os grandes clássicos, aquilo que está sendo usado para o trabalho naquele momento, livros afetivos, a herança de seu pai.
Afeto
A visita começa pela sala, onde está justamente esta “estante afetiva”. Quando o historiador senta ao piano, um imponente piano de cauda Yamaha que se destaca no ambiente, é ela que está em seu horizonte.
Em quatro prateleiras, algo como 122 volumes dividem o espaço com sua memorabilia. Obras de arte, objetos mexicanos do tempo de seu doutorado, um cadeado budista do Butão que ele achou lindo e comprou em um camelô na rua, enfeitinhos de Natal, um Buda de cada país da África e da Ásia que ele visitou - e um Buda de ouro de 2.300 anos --, uma máscara africana no século 19. Todo o Shakespeare, as poesias de Machado de Assis, cartas e contos de Clarice Lispector, o mais importante de Umberto Eco, Kafka, Gógol, a biografia de Beethoven e de Caravaggio, Eneida, Ilíada, “A Divina Comédia” -- uma, das várias que veríamos na casa.
E então chegamos aos livros que marcaram a sua vida, como “O Outono da Idade Média”, que o impressionou em seus tempos de USP. “Um livro lindo, feito no início do século 20, uma obra extraordinária”, definiu. A edição que ele tem hoje é a da Cosac Naify, de 2010. “Essa edição maravilhosa deve ter sido um dos motivos para a editora ter ido à falência”, comentou.
O “Nome da Rosa”, presente de uma amiga nos anos 1980, está na biblioteca do escritório, mas Karnal expõe, ali na sala, o box da Record que reúne este que é o livro mais famoso de Umberto Eco, “O Cemitério de Praga” e “O Pêndulo” de Foucault. “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski, “O Nariz”, de Gógol, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma!”, de Lima Barreto, e “Na Colônia Penal”, de Kafka, quase todos em edições caprichadas da Antofágica, também podem ser vistos na sala do escritor ao lado de Clarice Lispector (1920-1977), possivelmente a mais contemporânea entre os autores. “Eu diria que essa é a minha biblioteca visual, onde o livro é um pouco memória e um pouco obra de arte”, resume o historiador
A segunda
Da sala, seguimos alguns poucos passos até o claro e arejado escritório de Karnal. Há uma bancada em L. Uma das partes é uma espécie de entreposto com uma seleção rigorosa dos livros que ele recebe das editoras e que ainda vai examinar - a maioria fica no outro apartamento que ele tem no mesmo prédio, junto com o que será doado. Nela, ficam também os livros com os quais ele está trabalhando no momento e o que está lendo. Naquele dia, era a biografia de Elon Musk que estava em leitura.
Há outros livros afetivos ali, em meio a fotos de seus pais, um relógio comprado pela avó em 1935, dezenas de lápis grafite e sua coleção de bíblias - também o que sobrou. É possível ver ainda as obras em discussão no clube de leitura que divide com Gabriela Prioli, os livros dados por amigos e os que escreveu, outros clássicos, como “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, cuja releitura sempre causa impacto nele, e obras inusitadas que o tocaram, como “A Elegância do Ouriço”, best-seller de Muriel Barbery. Sem contar os que revelam seus interesses ecléticos -- por exemplo: ele adora plantas e tem livros sobre o tema. “Meu plano ‘c’ de carreira é ser jardineiro”, brinca.
Sobre as doações, portanto, diz que não faz sentido deixar um livro lido, que mudou sua forma de pensar sobre determinado assunto - o direito, por exemplo, ou o preconceito - mofar na estante. (Da Redação com Estadão Conteúdo)