Despejo na pandemia: problema a donos de imóveis e inquilinos
Entre os problemas socioeconômicos que o País já enfrentava e foram agravados pela pandemia do novo coronavírus está a crise habitacional. Com o aumento do desemprego e a redução de salários, muitos se viram do dia para a noite impossibilitados de pagar o aluguel. Negócios que foram obrigados a suspender ou reduzir atividades estão com a mesma dificuldade. Na outra ponta, proprietários que dependem do aluguel como renda também ficaram descobertos -- principalmente aqueles que fizeram contratos de locação sem garantia, como fiador, caução ou seguro-fiança.
Em boa parte dos casos, a solução foi conversar. De acordo com o último Termômetro de Locação da Secovi (sindicato da habitação), 54% dos inquilinos pediram renegociação do aluguel entre 7 e 14 de julho. Enquanto locatários de imóveis residenciais pleitearam descontos de até 35%, os comerciais pediram redução média de 54% no valor. O período para o desconto varia de 1 a 6 meses, mas a maioria (56%) concordou em 3 meses.
Quando não há acordo, resta apelar para o Poder Judiciário. De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foram protocoladas 1.290 ações locatícias na capital em junho, representando um aumento de 55,8% em comparação ao mês anterior. Do total, 89,1% são por falta de pagamento.
O Congresso derrubou na quinta-feira o veto do presidente Jair Bolsonaro ao trecho de um projeto de lei que impedia o despejo de inquilinos decidido por liminar durante a pandemia. Com a derrubada do veto, estão proibidas as liminares de despejo até 30 de outubro.
A ideia veio na onda de leis emergenciais adotadas por diversos países, como Alemanha, Argentina, Espanha, Inglaterra, Holanda, Portugal e Itália, que decidiram intervir no mercado imobiliário durante a crise.
Na visão de Caio Mário Barbosa, do escritório Duarte Garcia Serra Netto e Terra Advogados, a liminar de despejo só é concedida se atender a alguns quesitos, como o contrato de aluguel estar desprovido de garantia. Nos demais casos, não há liminar, já que a garantia oferece conforto e segurança financeira ao locador. “De qualquer forma, o melhor caminho é a negociação que permite um acordo de boa fé entre as partes, procurando ajustar o valor a ambas as realidades”, sublinha o advogado.
Direito à moradia
Karina Fritz, advogada e professora de pós-graduação em direito civil da PUC-Rio, cita como a questão foi solucionada, por exemplo, na Alemanha. “Se as partes não chegassem a um consenso, a lei permitia a suspensão do pagamento dos aluguéis vencidos durante o período crítico de lockdown, quando o inquilino demonstrasse não conseguir pagar sem comprometer seu sustento e de sua família”, afirma.
A medida, que também beneficiou empresas que demonstraram que o pagamento do aluguel comprometeria sua sobrevivência financeira, determinava a quitação posterior dos valores atrasados, de forma parcelada e diluída, junto com o aluguel do mês em curso.
“Com isso, quem já estava em atraso ou em dificuldade antes da pandemia ou quem não foi afetado por ela em seus rendimentos não tem direito de pleitear a moratória, o que evita condutas oportunistas”, diz a advogada.
Apesar de se presumir que o inquilino é a parte mais fraca da relação locatícia, Karina conta que países com realidade parecida com a do Brasil souberam fazer o balanço entre os lados. Na lei emergencial editada pela Argentina, além de o despejo por falta de pagamento ser provisoriamente proibido, os valores foram congelados e contratos comerciais e residenciais prorrogados até 30 de setembro.
O proprietário, no entanto, não fica totalmente desprotegido. “A regra não se aplica se o locador demonstrar que depende da renda para cobrir suas necessidades básicas”, explica a especialista.
O operador de telemarketing Mário Stanisci passa por tempos de angústia. Ele vivia em um apartamento com a mãe e dois irmãos, mas o imóvel tinha dívidas de condomínio e foi leiloado após a morte dela. Proprietário de outro imóvel, ele notificou a inquilina com antecedência de 30 dias para que saísse ao final do contrato de locação, em junho de 2019. Ela se recusou e passou a pagar apenas o valor parcial do contrato encerrado. O proprietário vem tentando despejá-la sem sucesso desde então, enquanto ele mesmo está vivendo em um quarto alugado. (Bianca Zanatta - Estadão Conteúdo)