Liberdade artística

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Dom Júlio Endi Akamine celebra hoje a Missa do Cadáver, na PUC/SP. Crédito da foto: Emidio Marques

Dom Julio Endi Akamine

A liberdade é um grande bem. Sem ela, o ser humano não se realiza plenamente. Privados dela, a nossa ação deixa de ser humana para ser a de escravos. A liberdade nos é essencial. Quando a liberdade nos é negada ou se renunciamos a ela, a única coisa que nos resta é nos submeter ao controle de um tirano, à manipulação da consciência, à cegueira da ideologia, ao medo do autoritarismo violento.

Se em si mesma a liberdade é um bem a ser defendido e buscado pela pessoa e pela sociedade, é igualmente verdade que o seu exercício pode ter uma finalidade boa ou má. A liberdade em si é sumamente boa, mas o seu uso ou abuso tem consequências para a própria pessoa, para os outros e, em muitos casos, para a sociedade. Igualmente a liberdade de expressão (de opinião, de imprensa, artística) em si mesma é um bem: deve ser garantida aos cidadãos de uma sociedade que pretenda ser democrática e minimamente civilizada. Também ela pode ser usada com mérito ou abusada com demérito para o sujeito moral.

Ante as repetidas manifestações pretensamente artísticas que abusam dos símbolos cristãos, resolvi convidar as pessoas de boa vontade a uma reflexão sobre o respeito devido à fé religiosa. Não vou identificar quais são essas manifestações, pois não quero acender mais holofotes para elas. Infelizmente até o protesto contra essas manifestações artísticas é contabilizado em favor delas. De qualquer forma, elas já foram tantas, tão desrespeitosas e divulgadas que posso me dispensar da tristeza de ter que descrevê-las.

Repito que a liberdade é um bem precioso, mas é preciso cuidar também do exercício correto desse grande bem. Uma ação não é boa pelo simples fato de ser livre: ela é boa se livremente escolhe o bem. Como a inteligência pode ser usada para curar chagas sociais ou ser empregada para construir armas de destruição de massa, assim a liberdade de expressão pode ser usada para transmitir a beleza, o bem e a verdade, pode inclusive denunciar erros e criticar com severidade comportamentos e ações condenáveis, ou, por outro lado, pode ser abusada para ofender pessoas e desrespeitar-lhes a dignidade.

A fé cristã pode e deve ser criticada. A sua sacralidade não proíbe que seja até mesmo contestada se assim for necessário. Nem toda a crítica é maléfica, desde que fundamentada na verdade e expressa de maneira justa. Aliás a capacidade de ouvir criticas é um sinal sadio de abertura ao diálogo de uma fé religiosa que se estrutura institucionalmente.

Infelizmente o que tem ocorrido em alguns casos não é o da crítica ou o da denúncia; trata-se de desrespeitosa ofensa à fé de cidadãos que procuram respeitar as leis da convivência social. Trata-se de um ataque à dignidade pessoal dos cristãos, pois, quando um “artista” usa de seu conhecimento técnico, de sua formação acadêmica, da sua criatividade e inteligência para conscientemente vilipendiar sinais cristãos, ele dá um recado claro aos cristãos: “vocês não são pessoas dignas de respeito”. Essa é a mesma mensagem ínsita nas ofensas racistas e sexistas.

Para reagir ao vilipêndio, não se deve fazer recurso à violência. Por outro lado, é preciso que os responsáveis pela construção da sociedade pluralista (autoridades civis e religiosas, educadores, artistas, comunicadores, políticos etc.) reflitam seriamente sobre que tipo de convivência social queremos para nós mesmos, quando se começa a tratar os cristãos como cidadãos de segunda categoria. Evidentemente essa não é uma atitude que promete um futuro melhor para a sociedade brasileira.

Tenho grande tristeza quando sou obrigado a tomar conhecimento do desdém que algumas manifestações artísticas expressam aos cristãos. Sofro com os cristãos que precisam conviver com caridade evangélica com pessoas que destilam seu ódio através de sua produção artística, tratando com desprezo a eucaristia, Jesus Cristo e Nossa Senhora, isso tudo em nome da liberdade artística. Meu sofrimento tem também uma nota pessoal pois conheço jovens aos quais tenho grande amor, que fizeram sacrifícios e se esforçaram muito para entrar em uma universidade para estudar belas artes. Angustia-me a possibilidade de estes jovens, cujos nomes e sobrenomes conheço, entrarem na mesma lógica de desprezo pela dignidade alheia em nome da liberdade de expressão.

Gostaria de convidar a comunidade artística a uma reflexão sobre a própria arte. Quando se eleva o obsceno, o imoral e o feio à categoria de arte, ela se destrói a si mesma. Peço que os artistas, atuais e futuros, ouçam mais o clamor das pessoas: “a gente quer Arte!” Arte que eleva o espírito humano e faz desejar ser mais humano! Arte que tenha fé na beleza, pois “a beleza salvará o mundo” (Dostoiévski).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.