Superar polarização na Argentina: o desafio de Alberto Fernández
O presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, alcançou a vitória após unificar as divisões no peronismo, mas agora enfrenta o desafio de superar o colossal abismo (ou "la grieta") que polariza os argentinos em posições que parecem irreconciliáveis.
"Acabou isso de 'nós' e 'eles'", declarou Fernández no domingo (27), pouco antes da confirmação de sua vitória no primeiro turno, com 48% dos votos. Ele prometeu deixar a polarização para trás e convocou que "todos trabalhem juntos por um país melhor".
"La grieta" - um termo importado da geologia (fenda, racha, rachadura) usado para evocar um tremor e rompimento definitivo - expõe os acalorados debates entre peronistas e antiperonistas, progressistas e conservadores, neoliberais e estatistas.
'Grieta'
"A 'grieta' é como dizer que 'se você não está comigo, você é meu inimigo'. Isso nos faz mal como irmãos", disse à AFP María Teresa Iriarte, uma enfermeira aposentada de 75 anos que viveu a ditadura (1976-1983), o radicalismo (socialdemocracia) e o peronismo.
Embora sempre tenha existido ao longo da história argentina, a "grieta" se consagrou como tal durante o governo da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), agora vice-presidente eleita.
Apoiada por multidões, Kirchner também era detestada por muitos setores que a criticavam por suas políticas econômicas, pelo estilo autoritário de governar e que a consideraram um símbolo de corrupção e um mal para o país.
Estas paixões evocam os sentimentos de amor e ódio provocados pela também mítica Eva Perón e pelo próprio Juan Perón, fundador do peronismo, o maior movimento político argentino, nascido em 1945.
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Segundo o sociólogo Agustín Salvia, diretor do Observatório de Deuda Social Argentina, trata-se de uma "construção político-comunicacional, que não necessariamente representa as vontades sociais".
Salvia apontou que as classes média e alta "sentem que fazem parte de um lado da 'grieta'". Defendem políticas liberais e se autopercebem como os representantes da República, enquanto, do outro lado, estão os peronistas e progressistas que se concentram em políticas mais distributivas, por exemplo.
"Não está claro que um (lado) seja a corrupção e o outro a anticorrupção. Tampouco é tão claro que o governo de Mauricio Macri tenha sido estritamente liberal e que o de Cristina lutava pela justiça social", disse este pesquisador da Universidade de Buenos Aires.
Encontrar o centro
"Nessa radicalização, montou-se o que depois foi o macrismo", afirmou o cientista político Pablo Touzon, coautor do livro "La grieta desnuda" ("O racha exposto", em tradução livre). Ele se refere ao projeto do presidente Macri, que assumiu em 2015 e deixará o governo em 10 de dezembro próximo.
Segundo Touzon, esta polarização política "se desenvolveu em muitos lugares do mundo", a partir da grande recessão de 2008 e se cristalizou em figuras como o presidente americano, Donald Trump, o venezuelano Nicolás Maduro, ou o brasileiro Jair Bolsonaro.
"A Argentina está tentando encontrar seu centro. Diante desta crise econômica e do colapso do macrismo, bem poderia ter sido eleito presidente um Bolsonaro, ou um Maduro. A Argentina, nesta união do peronismo, conjurou esse perigo", advertiu Touzon.
Kirchner, que mantinha um forte apoio, mas também uma alta rejeição, surpreendeu há alguns meses, ao desistir de sua candidatura e escolher para liderar a chapa Alberto Fernández, seu ex-chefe de gabinete. Eles se distanciaram em 2008 e depois se reconciliaram.
Nesta campanha, "os peronistas entenderam que, com o racha, não apenas não poderiam ganhar as eleições, mas que não poderiam governar", analisou Touzon. "La grieta" permeou a sociedade, rompendo famílias e amizades.
A divisão entre os argentinos "tende a ser uma tomada de posição política como se fosse uma posição no futebol, um Boca-River. Envolve valores, ideologia, mas tem muito de mito, de irrealidade", completou Salvia.
A aposentada Iriarte concorda: "Eu brigo com minha vizinha pelos políticos, mas eles estão tomando mate juntos. Riem de nós". (AFP)