Ídolos
Nelson Fonseca Neto - nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com
Nesta semana mesmo, eu estava no meu carro, esperando a luz verde do semáforo. Quase oito horas da noite. Trânsito carregado. Eu tinha dado dez aulas naquele dia. Eu estava faminto. Motos passando com tudo em corredores minúsculos. Calorão. Cenário perfeito para uma irritabilidade exacerbada. Mas acabei dando sorte com uma das rádios que sintonizei. Surgiu, redentora, a voz de Axl Rose. Enquanto a música rolava, pensei sobre ídolos.
O Axl Rose foi o ídolo dos meus doze, treze anos. A MTV estava no auge naquela época. Não havia esse lance de podcasts e Youtube. Axl Rose e Michael Jackson eram figurinhas carimbadas na televisão. É inacreditável pensar que, naqueles tempos, o Fantástico fazia um baita de um suspense para mostrar o clipe novo do Michael Jackson no fim do programa. E aquilo dava audiência, ô se dava.
Eu acho que todo mundo da minha idade queria ser o Axl Rose. As músicas eram maravilhosas. Havia pencas de fãs seguindo a fera. Ele pulava freneticamente no palco. As roupas eram surreais (e bregas, agora é fácil dizer). O Axl Rose era metido pra caramba. E encrenqueiro. E gente fina, ao mesmo tempo. (Os clipes protagonizados por ele mostram um sujeito atormentado e sofredor.)
Depois vieram os jogadores de futebol. Torço para o São Paulo. Vi a final da Libertadores de 92 no Morumbi. Seria fácil escolher o Raí como ídolo. Eu gostava muito dele, claro, mas a admiração autêntica ia para o Palhinha e para o Muller. O primeiro porque era franzino e lento. Por conta dessas limitações, ele só poderia recorrer ao cérebro. Deu certo. Depois dele, não vi jogador que desse passes tão milimétricos e inusitados. A idolatria pelo Muller tem tons metafísicos. Houve um tempo -- Copa de 90 -- em que eu o achava abominável. Ele sempre ficava impedido. Eu não me conformava com aquela burrice. Alguns anos depois, ele aprendeu. Mais ainda, tornou-se um jogador inteligentíssimo. Sempre achei esse processo um milagre.
Depois vieram os escritores. Lima Barreto tomou conta dessa fase. Cheguei a decorar vários trechos do romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Sem contar que a sua ferocidade sempre será exemplar. Aí eu descobri “São Bernardo”, de Graciliano Ramos. O estilo do livro virou uma meta a ser atingida. Passei a abominar adjetivos e advérbios. As frases encurtaram. Acho que até hoje tento seguir a cartilha de Graciliano. Pouco depois, apareceram Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. O primeiro reforçou a crença na prosa espartana. O segundo abriu um mundo de perspectivas para o adolescente que desejava ser ficcionista. Ele mostrou que qualquer tema pode tornar-se literatura de alto nível. Parece pouca coisa, mas não é.
O que falar dos russos que vieram no embalo? Não qualquer russo, importante ressaltar. Meus dois ídolos eslavos: Tolstói e Tchékhov. Tolstói porque parece que não tem assunto que ele não domine. Sem contar que eu não conheço ninguém que trabalhe melhor com o detalhe revelador. Até hoje as mãos de Anna Kariênina aparecem com uma nitidez assombrosa. Tchékhov porque ele mostrou compreender todas as camadas da complexa Rússia. E porque pouca gente escreveu de forma tão cristalina como ele.
Aos vinte e poucos, mergulhei no mundo do cinema. Vi muitos filmes dos anos 10, 20, 30 e 40. Assim, impossível não colocar John Ford e Howard Hawks num altar. Mas, nesse terreno, ninguém superará Buster Keaton.
É engraçado como vamos atravessando os anos. Na adolescência, meus ídolos eram da música pop e do mundo do futebol. Perto dos vinte, apareceram as referências mais eruditas. Era de se esperar que, entrando nos quarenta, eu mantivesse o pique da remada da segunda fase. De certa forma, foi o que aconteceu, mas não do jeito imaginado. De uns bons meses pra cá, minha ternura é dirigida a nomes que eu tendia a menosprezar poucos anos atrás. Muitos escritores da literatura dita policial. Muitos autores de romances satíricos.
Dessas paixões recentes, nada supera a que sinto por Georges Simenon, o maior gênio do século XX. Antes eu teria vergonha de dizer uma coisa dessas. Que bom que a gente aprende a deixar de ser bobo.