Milagre de Natal
Nelson Fonseca Neto - nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com
Espero que você desfrute de uma merecida folga nos próximos dias. Espero, também, que você não seja atormentado pela diabólica combinação de calor com umidade. Todo mundo é meio coach hoje em dia. Estou aqui para trazer alguns pitacos. Estou aqui para ajudar na travessia dos próximos dias.
Não acho que exagero quando afirmo que todo mundo é meio coach hoje em dia. Ontem mesmo a Patrícia, o João Pedro e eu notamos o que está acontecendo. Estávamos na praça de alimentação de um shopping center. Perto de nós, três jovens conversavam efusivamente. (São raras as pessoas que falam baixo atualmente.) Uma garota e dois rapazes. Um dos rapazes estava macambúzio. A garota e o outro rapaz estavam ali para ajudar. A garota emendou um discurso motivacional dos mais ferozes. Tivemos a certeza, lembrando de outras situações, de que todo mundo é meio coach hoje em dia.
Vai ver é o espírito natalino: normalmente, a constatação de que todo mundo é meio coach hoje em dia renderia pensamentos sombrios. Mas, nesta época do ano, a gente fica molenga. A gente não quer acabar como o Scrooge do Dickens ou como o tio Patinhas do especial de Natal da Disney. A gente quer ser útil de alguma maneira. É com esse espírito que escrevo.
Serei, aqui, uma espécie de coach das horas de ócio. Meu desejo é fazer com que você preencha da melhor maneira possível as horas preguiçosas. Infelizmente, meu instrumental não é dos mais vastos. Nunca primei pela versatilidade ou pelo ecumenismo. Não espere que eu indique viagens. Penso quinhentas vezes antes de ir a São Paulo. Acho que você entendeu o drama.
Minha veia gastronômica é ridícula. Não sou exigente. Meu paladar é tosco. Só tomo cuidado com alimentos vencidos ou com lugares que claramente transformam o ato de comer em roleta russa. Tirando isso, minha nota é perto de zero. Não sou um desbravador de restaurantes. Tenho algum trauma com vinho. Assim, não serei o Guia Michelin de Sorocaba e região.
Você notou que a coisa toda está caminhando para sugestões que devem ser desfrutadas no santo lar brasileiro. Ainda assim, restringindo o processo, terei de excluir as séries que pipocam na Netflix e afins. Vi uma ou outra dessas séries. São ótimas. Sempre acharei “Breaking bad” e “Mad men” obras-primas. Só que estou desatualizado. Ouço por aí que existem dezenas de séries bacanas surgindo a cada ano. Quem sabe, um dia, eu dê conta de 1% dessas novidades.
Restaram os livros. Você leu a frase que abriu este parágrafo e deve ter pensado: “mais do mesmo”. Sim, mais do mesmo. Sorte que ninguém poderá dizer que sou estelionatário. Avisei que sou limitado. Se você chegou até aqui, reconheça que trilhou um caminho seguro. Você leu que eu seria uma espécie de coach natalino. Você reconheceu minha modéstia. Você merece ser recompensado.
Não espere, aqui, um discurso emocionado sobre a importância dos livros. Tem muita porcaria circulando por aí. Não quero, justo nesta época do ano, ferir sensibilidades. Não citarei o que considero porcaria. O que é porcaria para mim pode ser sublime para você. E vice-versa. Aprendi a ficar de bico fechado quando o assunto é gosto literário. Alguma coisa a gente acaba aprendendo nesta vida.
Vamos ao que interessa. Nesta época do ano, Simenon é perfeito. Ele é um milagre. Escreveu vorazmente. São centenas de romances. Isso mesmo: centenas. Isso já seria impressionante. Mas, quando o assunto é Simenon, saímos do “impressionante” e entramos no “milagre”. Na sua obra gigantesca, tudo é interessante. O cara consegue manter o alto nível. E por que Simenon é perfeito para os próximos dias? Porque ele representa o casamento perfeito de entretenimento com profundidade intelectual. Os romances protagonizados pelo comissário Maigret sabem despertar a nossa fome do “e agora?” e, ao mesmo tempo, fazem uma radiografia do que o ser humano tem de mais sombrio. De brinde, recebemos um olhar dos mais refinados sobre a sociedade europeia das décadas de 30 em diante.
Espero ter sido útil. Agora, posso deixar mofando minha roupa de coach por vários meses. Feliz Natal.