O que poderia ser

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Crédito da foto: Pxhere

Nelson Fonseca Neto - nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com

O cronista semanal é um sujeito dado a extremos. Há os dias da fartura e há os dias da escassez. Melhor dizendo: dias em que a gente tem um monte de assuntos para explorar e dias em que a gente entra em pânico porque corre o risco de dar o cano na editora do jornal. Vivo sempre as duas situações. Não sou capaz de explicar o que motiva uma ou outra.

Escrevo este texto numa manhã de sábado. O nenê ainda dorme. Logo mais ele acorda. A Patrícia está lendo no quarto. Já resolvi algumas burocracias. Eu bem que poderia tratar desta coluna no domingo de manhã, como de costume. Mas decidi aproveitar o embalo. É que hoje eu estou com a cabeça minhocando de assuntos.

Não deixa de ser um perigo. Corro o risco de entregar algo bagunçado. Isso já aconteceu em outras ocasiões. Teve gente que reclamou, dizendo que eu tinha dado uma baita de uma enrolada. O pior é que tinha sido o contrário. A gente enrola quando não tem assunto. Naqueles dias, eu padecia de abundância. Como eu não sou um cara disciplinado, a confusão imperou. Estou no terceiro parágrafo e percebo que as coisas estão saindo do meu controle. Pelo jeito, sairá uma crônica sobre a crônica. Eita, que coisa mais manjada! Paciência.

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Eu dizia que a minha cabeça está minhocando de assuntos. Vou colocar as cartas na mesa. Quais assuntos? Antologia do humor russo. Serguei Dovlátov. Política nacional. Chatices de coach. Ambiente de livraria. Compras pela internet. Robôs que comentam na internet. Educação. Barulho no trânsito. Portaria eletrônica. Celulares.

A lista mostra uma mente errática. Mostra um cara com um maníaco gosto pela literatura russa. Mostra um cara apaixonado por humor sombrio. Mostra um cara afinado com tragédias. Mostra um cara observador e ranheta. Mostra um cara deslumbrado. Mostra um cara sagaz. Mostra um cara engajado. Mostra um cara que está ficando velho. Mostra um cara pessimista. Mostra um cara indiferente. O leitor que trate de ligar os pontos. Este cronista se julga ardiloso. Ele não entrega a rapadura assim tão fácil.

Se eu fosse organizado e sério, este poderia ter sido um texto sobre um livro fascinante, publicado pela Editora 34: “Antologia do humor russo”. Teria sido uma resenha esclarecedora. Mostraria um leitor arguto e erudito. Traria a prova cabal de que muitos dos grandes textos literários arrancam gargalhadas. Também poderia ter sido um convite para se conhecer um dos grandes escritores do século XX: Serguei Dovlátov. Teria sido um texto apaixonado. Ele teria mostrado que a herança de Gógol nas letras russas é insuperável. Os leitores diriam: uau, que cara culto! Ou, o mais provável: que cara pedante!

Se eu fosse organizado, este poderia ter sido um texto ousado. Ele uniria política nacional, educação, barulho no trânsito e robôs na internet. Seria um ensaio ousado. Misturaria humor com coisa séria. Iluminaria regiões para as quais ninguém dá bola. Mostraria a nossa tragédia. Os leitores diriam: nossa, que cara inteligente! Ou, o mais provável: nossa, que cara biruta!

Se eu fosse organizado, este poderia ter sido um texto lírico sobre portaria eletrônica. Teria sido uma homenagem aos porteiros tradicionais. Traria as reminiscências de alguém que vive há quase quarenta anos em prédios. Mostraria que os porteiros estão desaparecendo. E mostraria que, junto com eles, uma parte bela da vida desaparece também. Os leitores diriam: eis um cara dado a remar contra a maré. Ou, o mais provável: eis um romântico incorrigível.

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Se eu fosse organizado, este poderia ter sido um texto surpreendente sobre telefones celulares. Ele teria algo de polêmico. Ele mostraria que o celular, em determinadas ocasiões, é uma dádiva. Por exemplo: em salas de espera. Impossível achar melhor o tempo em que a pessoa se via obrigada a ler revistas velhas e cafonas ou se via obrigada a iniciar conversas tediosas e patéticas. Ele mostraria que o mundo pré-celular não era o paraíso dos debates refinados e das conversas instigantes. Simplesmente as pessoas não tinham para onde correr. Seria um texto que deixaria claro que celular no trânsito é uma maldição. Também daria umas alfinetadas em quem faz questão de berrar enquanto usa o aparelhinho. Os leitores diriam: eis um cara que percebe as sutilezas da vida. Ou, o mais provável: eis um cara que quer ser do contra e acha bonito ser assim.

Mas não sou organizado. E o resultado é o que você acabou de ler. Preciso parar por aqui. O nenê acordou e ele precisa de um pai centrado. Tchau.