Panem et circenses

Artigo escrito por Edgard Steffen

Por Cruzeiro do Sul

Brasil sediará a Copa da América
(Do noticiário)

Em maio de 1919, no Estádio das Laranjeiras (RJ), o Brasil derrotou o Uruguai e faturou o título do 3º Campeonato Sul-Americano, disputado entre os dois países, mais Argentina e Chile. Foi o primeiro feito importante conquistado por nossa seleção. O certame deveria realizar-se em 1918, mas foi adiado pelo surgimento da pandemia da Gripe Espanhola. Entre setembro e novembro, o Rio de Janeiro, sede do evento, registrara aproximadamente 15 mil óbitos pela doença.

Rodrigues Alves -- o presidente que fundou o Instituto Butantan, bancou o saneamento da capital federal, implantou a vacinação antivariólica obrigatória, venceu a febre amarela e outras epidemias --, eleito para um novo mandato, acabou vitimado pela gripe. Morreu aos 16/01/1919, antes de tomar posse. Tinha 70 anos e estava no auge da popularidade. Nilo Peçanha, seu oponente, recebeu menos de 1% dos votos.

Passados mais de 100 anos, estamos diante de situação parecida. Pandemia, originada na China, assola e assombra os quatro cantos da terra. Parênteses. Antes que me reputem terraplanista, uso a expressão “quatro cantos da terra” como licença poética. Não existem cantos numa esfera. Argentina e Colômbia recusaram-se a sediar os jogos por temerem o recrudescimento da Covid-19. O Brasil aceitou. Por Brasil, entenda-se a vontade de ocupantes do Planalto e CBF.

Paira no ar um certo odor eleitoreiro. Claro que condições foram impostas. Vedada a presença de torcidas. Todos os participantes obrigatoriamente vacinados. Jogadores, comissões técnicas, árbitros e imprensa esportiva constituem um grupo pequeno diante da imensidão dos 214 milhões da “pátria em chuteiras” (com a devida licença de Nelson Rodrigues)*.

Os dólares da Conmebol e dos direitos de transmissão podem resultar num pouco de oxigênio para nossas falidas entidades futebolísticas. Sediar o evento também serve para ocupar as desocupadas arenas herdadas de governo anterior. Ou para esquecer os 7x2 chocolates tedescos.

A decisão gerou protestos e panelaços. O que não é novidade numa república que viveu a Revolta da Vacina. Opositores ao primeiro governo Rodrigues Alves esgoelaram e o povo saiu às ruas contra a vacina antivariólica. Os atuais oponentes lideram protestos contra a falta de vacinas e culpam o presidente e os ministros (saúde e relações exteriores) pelo fraco empenho na aquisição de imunizantes.

Não faço julgamentos nem tenho condições para julgar. Numa casa onde falta pão, todo mundo briga e todos têm razão. Num país em plena pandemia, onde faltam vacinas, leitos, UTIs, oxigênio, todo mundo chia. Dão palpites em administração e epidemiologia. E todos têm razão. Sem mencionar empresas que sucumbiram, desemprego, escolas fechadas, incerteza do amanhã e por aí afora.

Mas que o rolar da pelota pelo quadrilátero verde, a copa faz lembrar a Roma Antiga. Tanto na república como no império, os governantes usaram e abusaram do Panem et circenses para superar crises. Assim como o nosso governo distribui auxílio emergencial precário para a subsistência, os cônsules e imperadores romanos distribuíam 21 litros de trigo para as famílias fabricarem pão. Além de pouco, cobriam apenas 0,5% da população. E o circo com suas lutas de gladiadores, servia à diversão tanto de plebeus como de patrícios.

Cícero**, grande tribuno e político, escreveu: “O mal não está no pão e circo, em si, mas na complacência do povo em vender seus direitos de homens livres em troca de barrigas cheias, e a excitação dos jogos serve para desviá-los de outras fomes humanas que pão e circo nunca poderão apaziguar.”

O poeta Juvenal**, autor das Sátiras, simplificou: “Dê-lhes pão e circos e eles não se revoltarão.”


(*) 214.554 678 habitantes (IBGE).

(**) Marco Túlio Cícero e Décimo Júnio Juvenal

Edgard Steffen (edgard.steffen@gmail.com) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)