Caminhos cruzados entre a Medicina e a Veterinária
Artigo escrito por Edgard Steffen
Câmara aprova projeto que autoriza laboratórios
veterinários a produzir vacinas contra Covid19
(Dos jornais)
A notícia me trouxe à memória (anos 60/70) a indignação de dr. José Palandri Neto, companheiro de trabalho. -- “Steffen, não me conformo com isso! A Secretaria da Agricultura tem moderna cadeia de frio, inclusive veículos frigoríficos para distribuir imunobiológicos para a pecuária. Nós não temos quase nada!” Dizia isso porque, na Regional da Saúde, tínhamos refrigeradores e freezers comuns e nos centros de saúde, quando muito, geladeira doméstica. Ou nem isso. Vacinas destinadas ao gado eram rigorosamente protegidas por congeladores e refrigeradores, desde a produção até a aplicação. Nossos soros e vacinas não contavam com esses cuidados. Na primitiva e distorcida lógica capitalista, população animal gera riqueza enquanto população humana gera despesa.
Vivo fosse, Palandri exultaria com os insumos -- freezers e geladeiras específicos para imunobiológicos, termômetro de máxima e mínima, alarme contra falta de energia -- garantidores da conservação dos soros e vacinas alocados nas unidades de saúde e manejados por funcionários treinados na aplicação, na obediência a protocolos, na investigação dos efeitos adversos. Vibraria ao constatar que a vacinação de rotina associada às campanhas nacionais controlaram doenças preveníveis por vacina, erradicando-as (varíola, poliomielite) ou baixando a incidência a níveis comparáveis aos do 1º mundo.
Nos anos em que militei em postos do Departamento Estadual da Criança a situação era pior. Respeitava-se apenas o prazo de validade. A vacina antivariólica (vírus próprio do úbere das vacas) era ministrada pelos velhos e burocráticos centros de saúde. BCG (bacilo da tuberculose bovina) era território da Divisão de Tuberculose e os postos de puericultura aplicavam a tríplice DPT (difteria, tétano e coqueluche). Tudo transportado em veículos comuns ou enviado pelos correios. Nos “postinhos”, vacinas eram guardadas nas prateleiras.
Em vacinados, nunca identifiquei casos de difteria (crupe), tétano ou tosse comprida grave. Resumo e tento explicar. Os cuidados de conservação (temperatura controlada, ao abrigo da luz) mantêm a potência imunizante máxima. Quando expostas à temperatura ambiente, vacinas e soros não perdem de imediato a capacidade imunizante. O decréscimo é paulatino. Como os micróbios causadores das doenças ainda circulavam entre as crianças, o contato entre elas cuidava em reforçar a produção de anticorpos iniciada pelas “vacinas de prateleira”. Prolegômenos do neologismo imunidade de rebanho.
Os soros antiofídicos -- anticorpos prontos retirados do sangue de cavalos imunes -- eram distribuídos em todo território nacional. Havia um procedimento, explanado na bula, determinando aumento do volume aplicado quando as ampolas estivessem à temperatura ambiente ou/e ultrapassassem o prazo de validade. Se não me trai a memória, 10% a maior por ano de ultrapassagem da validade ou fora da geladeira. Muita gente foi salva das picadas de cobra pela obediência à recomendação. Não se jogava fora, como hoje se faz.
Contar a história das vacinas não quer dizer concordar com desleixo na conservação. A tal imunidade de rebanho era circunstancial em um país subdesenvolvido. Com as vacinas atuais, não se pode admitir que a população fique à mercê da lotérica resistência natural.
Para prevenção da Covid-19 temos vacinas a escolher. Vírus inativado, vírus atenuado, proteínas virais, fragmentos de material genético, etc. etc. Testadas e aprovadas. Importante é que o Ministério da Saúde as adquiria em tempo hábil e volume suficiente. O resto fica por conta de governadores, prefeitos e das equipes de saúde. Sem desrespeitar condições de armazenamento e distribuição.
À população, vacinada ou não, cabe distanciamento, uso de máscaras e cuidados individuais para evitar a exposição. Não se contamine nem pelo vírus nem pelas fake-news. Estas, mais perigosas que a Covid19.
Edgard Steffen (edgard.steffen@gmail.com) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL).