Brrrr... que frio!

Artigo escrito por Edgard Steffen

Por Cruzeiro do Sul

A Região Sul registrou neve em 80 municípios esta 5ª feira
(Notícia na televisão)

Esta frente fria vai ficar para a história. “Que coisa mais linda!” exclamou, olhando para as câmaras, uma turista entre as muitas que encheram hotéis e pousadas da serra catarinense. Famílias inteiras, encapotadas, vieram de todos os pontos do Brasil para conhecer a novidade. Pareciam crianças frente aos brinquedos de um White Christmas. Fosse mais novo e nunca tivesse visto nevar, também gostaria de lá estar e me comportar feito criança.

As imagens da TV aberta lembraram-me clipe em que o cantor Allan Furtado, em Curitiba -- capital mais fria do Brasil, parodia “As Quatro Estações” de Sandy & Júnior. “A noite cai, o frio desce / Eu só queria estar no Nordeste / Reclamando do calor”. Nesta semana, em sentido contrário, muita gente saiu do calor para passar frio no Sul.

Dou uma olhada no Houaiss. Encontro 29 acepções para o verbete “frio”. Na rubrica meteorologia, “diz-se de frente que se caracteriza por baixa temperatura”.

Encorujado dentro de casa, protegido deste “frio de renguear cusco”¹ causado pela massa polar, resolvo alinhavar uma colcha de retalhos sobre o tema frio. Uso minha memória musical, auxiliada pela coletânea do meu amigo Aldovandro Moreira Filho².

Começo com uma canção americana, executada em duetos. Narra situação de dois amantes durante nevasca no Natal. O namorado quer pegar a estrada, enquanto a garota tenta retê-lo cantando o estribilho “Baby, it’s cold outside!” (Querido, está frio lá fora!). O que pretende sair fala do irmão preocupado à porta da casa, da mãe angustiada com a ausência, do irritado pai andando de cá pra lá, da tia solteirona maliciosa. A namorada oferece mais um drinque ou cigarro, alerta para o perigo de pneumonia... Em vão, cear com a família é item pétreo na data.

Na música latina, boleros (e alguns tangos) tem letras passionais. Traduzem emoções exacerbadas. De tão trágicas, parecem comédias. Falam em sangre, em muerte. No bolero “Frio en el alma”, o verbete traduz a dor de alguém abandonado. “Frio en el alma, desde que tu te fuístes (à) Porque se tu non vuelves / Me matará el dolor”.

Em nosso cancioneiro, “Súplica” -- sucesso de Orlando Silva -- o qualificativo “frio” está num objeto que simboliza a crueldade do amante que se foi; “fria” vai para as paredes do apartamento abandonado e na adjetivação da madrugada que entra pela janela aberta. “Aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim (à) As súplicas morreram sem eco, em vão / batendo nas paredes frias do apartamento”.

As frentes frias costumam trazer chuvas. Tito Madi, nascido em Piraju (SP), fez grande sucesso como cantor de fossa e bossa. Dele, um samba canção “A noite está tão fria, chove la fora / Esta saudade enjoada não vai embora”. Os versos mesclam a condição meteorológica e a frialdade da solidão para o abandonado.

O poeta Francisco Otaviano usou o frio como desdita no poema onde afirma “quem não sentiu o frio da desgraça (à) passou pela vida e não viveu”. Na segunda estrofe do soneto “Solitário”, Augusto dos Anjos versejou “Era frio, e o frio que fazia / Não era esse que a carne nos conforta / Cortava assim como em carniçaria / O aço das facas incisivas corta”. E a amada não lhe veio aliviar a solidão...

Adoniran Barbosa, no clássico “Saudosa Maloca”, descreve a condição sem-teto dos desalojados pela demolição do palacete assobradado onde viviam. Usa o dito popular “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Nesta massa polar não cabe o dito nem como licença poética. Mendigos foram abrigados na Estação Pedro II do metrô. Ao receber o cobertor e diante do prato de comida quente, algum deles, sem olhar para as câmaras de TV, talvez tenha exclamado “Que coisa mais linda!...”

Mãos afetuosas invertem o adágio. Deus, através de pessoas caridosas, dá o cobertor adequado a quem tem frio. Amor ao próximo, sem licenças poéticas.

1 Gíria gaúcha divulgada no JN pelo William Bonner -- renguear (tornar manco) cusco (cão pequeno sem raça)

2 A. Moreira Filho & L. Dotto -- As canções que gostamos de cantar, 2003

Edgard Steffen (edgard.steffen@gmail.com) é médico, escritor e membro da Academia Sorocabana de Letras (ASL)