Livros para uma possível primavera
Artigo escrito por Leandro Karnal
Sim minha querida leitora e meu estimado leitor: foi um longo e tenebroso inverno. Lobos uivaram na estepe gelada, as boas ideias sofreram com a temperatura baixa e a sociabilidade humana despencou com um vento que começou a soprar de março do ano passado. Uma quase miniera glacial com geleiras imensas e escassez de tudo, especialmente de esperança. Praticamente um ano e meio de inverno duríssimo. Há sinais de que, em alguns vales, germinam plantas promissoras chamadas vacinas. Tudo leva a crer que, se o frio ainda fustiga e os cuidados permanecem em muitos setores, talvez esteja raiando uma primavera.
Estação nova e aguardada! Nunca tivemos tanta ansiedade pelo fim de uma crise. Uma maneira extraordinária de encarar um novo mundo que pode estar surgindo pela frente é ler coisas boas, novas, instigadoras de ideias e de novos olhares. Ler serve para todas as estações, para a saúde e para as pandemias, para as crises econômicas e para acompanhar a recuperação de mercados.
Dois livros de Michael Sandel darão o que pensar até o verão: “Justiça - O que é fazer a coisa certa” e “A tirania do mérito - O que aconteceu com o bem comum” (2020, Civilização Brasileira). Os bons exemplos do professor norte-americano, sua aplicação, prática de princípios de ética e de justiça, sua expressão viva e cativante de conceitos dos grandes filósofos justificam o enorme sucesso dos dois livros ao norte e ao sul do Equador. Ambos os textos farão você repensar coisas que o senso comum construiu e que tomávamos por verdades autoevidentes. Se quiser manter a ordem de publicação nos EUA, leia “Justiça” primeiro. Se daqui até o fim do ano você decidir que tem paciência para apenas mais dois livros, leia esses dois.
Pensando já nas festas de fim de ano, amigo-secreto ou férias? Você pode se abastecer de uma coleção de clássicos da editora Antofágica. Daniel Lameira, Sérgio e Rafael Drummond e Luciana Fracchetta tomaram a decisão, no nosso momento de crise, de lançar obras de referência em capa dura. Antes que sejam interditados judicialmente por insanidade evidente em apostar na cultura formal, aqui vão alguns livros: “Na colônia Penal” (Franz Kafka), “O nariz” (Nikolai Gógol), “Werther” (Goethe), “Triste fim de Policarpo Quaresma” (Lima Barreto), “O morro dos ventos uivantes” (Emily Brontë), “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis), “A ilha do tesouro” (Stevenson), “1984” (Orwell) e muitos outros. Quer um bônus? Ilustrações interessantes e variadas nos livros. Exemplo? Portinari aumenta a riqueza do livro de Lima Barreto. Dar um livro bem encadernado com uma bonita dedicatória sua é um presente permanente.
Os livros de Sandel tratam de ideias muito atuais e presentes nos debates internacionais. Os clássicos da Antofágica percorrem ideias eternas do cânone ocidental. Vamos ao Brasil profundo: o aclamado Itamar Vieira Jr. tinha surpreendido o público com seu “Torto arado”. A poderosa narrativa do baiano agora aparece como histórias autônomas: “Doramar ou a odisseia” (Ed. Todavia). Um Brasil que raramente aparece na internet ou na grande imprensa: ler Itamar virou uma maneira de pensar além da imensa classe média simbólica que nos assombra e cega sempre. A sensação que tenho com os textos dele é de que eu vivo em uma bolha e ele me expulsa de uma razão muito limitada. Faça seu próprio julgamento lendo-o, afinal, livros ajudam muito nisso.
Seu campo é a história? A Planeta (com o selo Crítica) lançou “Os templários”, de Dan Jones. A pesquisa dele consagra o que de mais recente sabemos sobre a grande ordem religiosa militar que anima debates até hoje. Prefere um romance policial? A mesma editora (selo Tusquets) lançou “Terra alta”, do espanhol Javier Cerca, já famoso pelo livro “Soldados de Salamina”. No novo livro, a personagem Melchor Marín me levou a imaginar que um dia será alvo de um grande filme. Um desafio: ler o livro “Justiça” (de Sandel) e depois analisar a vingança contida em “Terra Alta”, aproximando os conceitos filosóficos e ficcionais. Que primavera seria!
Existe um tema controverso que anima muitas publicações. Devo aplicar a alta filosofia para questões cotidianas? Sócrates e Platão podem responder sobre redes sociais ou depressão? Alguns detestam e eu sempre imagino que, afinal, era esse o objetivo dos pensadores. Marie Robert lançou “Não sabe o que fazer? Pergunte aos filósofos” (Planeta). Eric Weiner publicou “O Expresso Sócrates - Em busca das lições de vida de filósofos imortais” (Alta Life). Gabriel Chalita lançou pelo novo selo Serena “Viver é verbo - Como a filosofia pode nos ajudar a entender o mundo pós-pandemia”. São livros que buscam nos grandes pensadores uma resposta a questões muito atuais. Por exemplo: Você está com crises com seu adolescente? Levinas pode dar dicas preciosas, segundo Marie Robert. Está viajando e lida com vontades de prazer? Epicuro é uma fonte na pena de Eric Weiner. Qual a relação entre justiça e generosidade? Aristóteles falará pelo texto de Chalita. De todos os lados, luzes clássicas reinterpretadas para nosso mundo. Confesso: quando li o capítulo do “Expresso Sócrates” sobre Sei Shônagon e a reflexão sobre as pequenas coisas, envergonhou-me confessar que jamais tinha ouvido falar desta pensadora japonesa. Fui atrás de “O livro do travesseiro” dessa pensadora da corte japonesa do século 11. Em outras palavras: os textos me ajudaram a conhecer mais e ser menos ignorante.
Em resumo: ler para que a primavera vença. Ler para restos de inverno serem menos complicados. Ler para ser e para crescer. Uma decisão a ser tomada daqui para o fim do ano. Aceita o desafio de semear esperança no cérebro?
Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.