As loterias estaduais vêm aí, mas é preciso responsabilidade
Artigo escrito por Bruno Nagli
O Supremo Tribunal Federal finalmente pacificou a exploração de loterias pelos Estados no Brasil, entendendo esse tipo de operação como legítima e não exclusiva do governo federal. Assim, caiu por terra o monopólio da União na exploração de atividades lotéricas, estabelecido por decreto de 1967.
Segundo o STF, a exploração de loterias caracteriza um serviço público garantido pela Constituição Federal de 1988, e o Decreto-Lei nº. 204/67 feriu essa prerrogativa ao restringir essa competência unicamente à União e proibir, consequentemente, a regulamentação dos serviços de loteria e sua operação por parte dos Estados-membros da Federação. Portanto, ao menos nessa parte o Decreto-Lei não foi recepcionado pela Constituição Federal.
Diante desse novo cenário, que corrige uma distorção histórica, algumas administrações públicas estaduais já se movimentam e preparam o lançamento de suas próprias loterias. Outros governos que corriam o risco de ter de encerrar seus serviços lotéricos, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba e Ceará, agora poderão mantê-los e até mesmo ampliá-los após a decisão da Suprema Corte.
Mesmo Estados que antes não demonstravam interesse na exploração de atividades lotéricas -- caso de São Paulo e Distrito Federal, por exemplo --, decidiram entrar no jogo e estão buscando as formas mais adequadas de construir suas loterias, por meio de parcerias com a iniciativa privada, de modo a aumentar suas arrecadações orçamentárias e, assim, ofertar melhores serviços à sua população em áreas sociais.
O mercado de loterias é altamente atrativo. Somente em 2020 a Caixa Econômica Federal (CEF) arrecadou mais de R$ 17 bilhões com apostas -- 40% dos quais com a Mega-Sena --, um recorde histórico, que poderá ser ampliado com a viabilização dos jogos lotéricos estaduais.
É preciso, no entanto, cautela, transparência e muita responsabilidade no desenvolvimento de um modelo sustentável de loterias no âmbito dos governos estaduais, mediante a escolha de parceiros idôneos e de comprovada expertise na implantação e exploração de serviços lotéricos, que sejam pautados pela premissa de jogo responsável que já norteiam os produtos hoje oferecidos pela CEF. Além disso, não se pode perder de vista o caráter social, previsto na legislação, das loterias. Ou seja, a renda líquida obtida com a criação de novos produtos lotéricos e sua operacionalização deve ser destinada a programas sociais e de assistência médica.
Para a construção de um formato viável de loterias nos Estados é imperioso que não se repitam erros, como aconteceu por ocasião da implantação dos bingos, no início dos anos 2000, quando o modelo de credenciamento das instituições interessadas por prazo determinado -- teoricamente mais barato e rápido -- mas sem as garantias e amarras necessárias para consolidação desse segmento. A precariedade e a menor regulação, além de fraco controle estatal, não pode se repetir.
Nesse sentido, a concorrência pública para a concessão exclusiva da exploração dos serviços lotéricos parece ser o caminho mais adequado, pois permite a exploração das modalidades de produtos lotéricos por parte da instituição vencedora do processo licitatório por um tempo maior 10 a 20 anos mas com a obrigação do parceiro em implantar inovações mercadológicas e tecnológicas necessárias ao longo desse período, sob contínua fiscalização dos serviços por parte do poder público e a necessária prestação de contas junto aos órgãos de controle.
A estruturação do procedimento de concorrência pública é complexa e desafiadora, sobretudo aos Estados que ainda não possuem experiência na operação de serviços lotéricos. Com intuito de viabilizarem seus próprios jogos, algumas administrações estaduais estão adotando um modelo de manifestação de interesse, por meio do qual empresas e consórcios do setor privado apresentam estudos relacionados ao mercado lotérico, avaliando sua viabilidade jurídico-regulatória e econômico-financeira, dentre outros pontos.
Com base nos estudos apresentados é que serão modelados os processos de concorrência pública para a implantação das novas loterias. Trilhando esse caminho será possível, aos gestores estaduais, estabelecer um formato seguro e sustentável de delegação da exploração dos serviços lotéricos em benefício de toda a sociedade.
Bruno Nagli é advogado e ex-secretário-executivo de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.