A vaca do avião

A lição edificante é sobre relatividade da percepção do espaço, conformismo e, claro, estratégias de felicidade

Por Cruzeiro do Sul

Leandro Karnal

Você já ouviu aquela história do camponês que achava sua casa apertada? Consultado sobre a queixa do matuto, o padre da aldeia orientou-o a colocar uma vaca e outros animais na sala. Ele estranhou, e, como devoto simples, obedeceu. Depois, a autoridade religiosa mandou retirá-los, e o bom homem, vendo o ambiente livre dos seres, passou a achar sua casa ampla. A lição edificante é sobre relatividade da percepção do espaço, conformismo e, claro, estratégias de felicidade.

Vou além da vaca doméstica. Na juventude, eu voava com a Varig. Experimentei comida de verdade, talheres de metal, guardanapo de pano. Havia toalhas quentes e úmidas para as mãos. Fui ao México (classe econômica) e um cardápio com uma linda arara ilustrava o que degustaríamos nas alturas. Imaginava as raridades que o povo da executiva e da primeira tinha para si.

Depois, acompanhei o fim das refeições quentes. Despontou um sanduíche gelado com refrigerante na ponte aérea. Estava ruim? Surgiram as barrinhas de cereais. Os atentados do 11 de setembro trouxeram talheres de plástico que quebravam com o simples olhar. Depois, até o minguado lanchinho desapareceu. Com a pandemia, evaporou tudo. Parece que trouxeram o bode e o porco para fazerem companhia para a vaca nos aviões.

Passamos a viajar de máscara. Li, um dia, que estudaram colocar os viajantes de pé nos trechos curtos, atados a cintos nas paredes. Parece uma estratégia para ameaçar: comportem-se e sejam felizes ou... mais animais serão colocados na sala. Aliás, a vaca somos nós.

Sentado de máscara e embaçando os óculos, aciono a chamada de comissários para ter o privilégio enorme de receber um copo de plástico com água... Penso no dia que eu contar para netinhos incrédulos que a gente já foi feliz voando.

Assim, vamos levando nossa vidinha decadente. A cada ano, parece que algo é retirado e um novo mal introduzido. Em um dia não muito distante, teremos, nas poucas poltronas de primeira classe ainda existentes, o serviço que, há 30 anos, era da econômica. As pessoas serão seduzidas pela tarifa máxima porque poderão ir sentadas, recebendo água e ainda podendo levar a bordo uma nécessaire, talvez...

É sinal de idade dizer que as coisas estão em declínio. Porém, podem fazer a análise que desejarem, eu direi a todos que, um dia, eu comi observando uma arara bonita em um cardápio elegante na classe econômica. Meninos, eu vi (e vivi) e ainda tenho esperança...

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras