As histórias contadas na cadeira do barbeiro
"Tigela na cabeça e maquininha. Era assim. (...) Depois de fazer o acabamento pezinho no pescoço, levava uma mãozada de álcool que fazia a alma descolar do corpo"
Vanderlei Testa
A porta de madeira envelhecida pelo tempo se abre para mais uma jornada de trabalho. No pequeno salão, um espelho na parede brilha quando a lâmpada se acende. A cadeira “Ferrante” do barbeiro Barbosinha, cheia de histórias, se mantinha forte, vigorosa, em décadas de existência suportando o peso de pessoas que já sentaram naquele couro surrado pelos anos. Duas tesouras afiadas na base do pequeno balcão que suporta os pentes e a máquina manual de cortar cabelo. Uma escova que limpa os cabelos derramados suavemente na gola da camisa do cliente e um vidro com a loção para fazer a espuma que acariciará o rosto até que a navalha com corte finíssimo faça a sua parte no aparar a barba, completavam o visual do salão. Essa introdução faz-me criar a história que poderia fazer parte de um filme poético ao digitar este texto. O Pichu é o atual proprietário da cadeira do saudoso Dito Barbeiro, na rua Aparecida, que ilustra a arte deste artigo. A Norma Sabadin, que morou muitos anos na Vila Santana, ainda se recorda que sua mãe a levava com 10 anos de idade para fazer permanente no cabelo. Ia ao salão do Emílio Bramante, rua Borba Gato com Aparecida. Ele foi barbeiro dos meninos e meninas e também de adultos, cerca de 30 anos. É pai do professor Antônio Carlos Bramante.
A Cássia Amaral contou que o seu filho Badú aprendeu cortar cabelo com o Honório. Pegou o gosto pela profissão e montou o seu próprio salão. Depois ensinou o seu irmão Markinhos a seguir a mesma profissão. O Luiz Antônio Stievano tem na memória os salões de barbeiro que frequentou. O Tomaz barbeiro na rua Comandante Salgado, o Hélio, na rua Campos Sales, e o seu João, na rua Padre Lara de Moraes. E a curiosidade, é que ele, Luiz Antônio, levava garrafas de vidro vazias como pagamento pelo corte de cabelo. Era uma maquininha manual que passeava pela cabeça, raspando tudo o que tinha de fios, só sobrando um estilo “bodinho” ou escovinha.
O José Francisco Sanches, quando foi casar, caprichou no corte para impressionar a noiva e convidados. Quem cortou o seu cabelo foi o Zé Menino Isquierdo. O Wagner Matiazzo fazia aulas de piano na “Santa Escolástica”, há 50 anos. Aproveitava a ida ao centro para cortar o cabelo em um salão na rua Padre Luiz. A família Morão aproveitava que o avô Antônio era barbeiro dos familiares, como a Nilza Lopes, ganhava de graça os seus cortes. O Ivan Robson contou que o seu barbeiro era o Aparecido, na rua Nogueira Padilha. O engenheiro José Alberto Deluno Junior era cliente do Lazinho Sales, um barbeiro que inovou em cortes masculinos. O advogado José Roberto Almenara conta: na sua infância ia ao barbeiro Vavá, que ajudava o mestre Carreteiro na arte da tesoura. Quem frequentava o Cine Eldorado, certamente se lembrará do Edson barbeiro, diz Agnaldo Alberto. O pai do Jair Martho ficava junto com ele para cortar o cabelo. E o Jair ganhava sempre a promessa cumprida de levar balas para casa se não chorasse. Já o Wilson Belinazi, com 12 anos de idade, se reunia com o pai e irmãos para a obrigatória raspagem do cabelo. Na avenida Ipanema havia o salão do Luiz Caçador, onde o seu afilhado, Célio Reinaldo, ganhava o seu corte de cabelo. Lembrando que o corte “soldado” era o mais usado nas crianças, aparando as laterais com máquina zero. Marcos Bozzelli foi um desses garotos que passou por essa tradição. Cosme Fiorelli até agora se arrepia ao se recordar do cabelo escovinha. Chorava e pedia ao pai que não queria esse corte, mas não tinha jeito.
O engenheiro Ademir Piqueira morava na rua Tereza Lopes. Ele ia ao salão do Cafisso e do Ricardo, na rua Olivério Pilar. O fato pitoresco contado pelo Ademir é que o Ricardo deixava revistas de fotos em praias de nudismo como leitura aos clientes. “Imagina a juventude dos anos 60 como lotava o salão”, enfatiza. Marisa Oliveira é filha do barbeiro Beda, na rua Campos Sales. Durante anos o salão do pai conquistou o pessoal do bairro, recorda Marisa. Ronaldo Gonçales Nato foi um garoto que prestava atenção nos cantos dos pássaros das gaiolas do salão do barbeiro. “Quando criança, eu cortava o cabelo no estilo escovinha no Clube Scarpa”, relatou o Enzo Corazza. “Meu sogro Octávio Forti tinha barbearia na rua Nogueira Padilha. Vivia lotada de recrutas do serviço militar do quartel da rua Manoel Lopes. Eles iam cortar o cabelo com o Otávio”, diz Marisa Forti. O Jesus Pinheiro Álvares dá uma ideia de como cortavam o seu cabelo: “Tigela na cabeça e maquininha. Era assim. Meu pai me levava no Salão 70, na Nogueira Padilha. Depois de fazer o acabamento pezinho no pescoço, levava uma mãozada de álcool que fazia a alma descolar do corpo”, conta, sorrindo, Alexandre Soares.
Perguntei ao médico Alexandre Carrer de Sá, que atua em Sorocaba, se recordava do barbeiro da sua infância, em Mococa. Lembrou-se da barbearia do Nenê Lipi. “O Nenê tocava saxofone na banda da cidade e, às vezes, entre um corte e outro, aparecia algum músico da banda. Ele simplesmente parava o meu corte de cabelo e ia mostrar a nova música que estava ensaiando. Como eu gostava de música, ficava na cadeira esperando até ele se decidir a terminar o corte com a sua maquininha. Havia até uma história que virou lenda em Mococa. Quem cortava o cabelo sem sentar e ficasse em pé, ganhava uma lata de sardinha do Nenê.” Teófilo Negrão, há 50 anos é amigo da Maria Ikeda e sempre aparece para cortar o cabelo com ela, uma das mais conhecidas cabeleireiras de Sorocaba. O empresário Marcos Ortega corta o seu cabelo há 60 anos no mesmo salão da Vila Santana, com transição pelos barbeiros Lazinho, Irineu e Vavá, que está com 80 anos de idade.
Vanderlei Testa (artigovanderleitesta@gmail.com) é jornalista e publicitário escreve às terças-feiras no jornal Cruzeiro do Sul