Filmes da Netflix: ‘Ataque dos cães’ (parte 4 de 7)
Artigo escrito por Nildo Benedetti
O que escrevi até aqui mostra um breve panorama de como a homossexualidade era vista pela psicanálise. O que escreverei a seguir dá uma ideia aproximada que vigorava sobre a masculinidade no ambiente sociocultural em que “Ataque dos cães” se desenrola, em 1925.
Quando Phil e George nasceram, nas últimas duas décadas do século 19, a realização da conquista de terras inóspitas do Oeste dos Estados Unidos ainda perdurava. Os homens fortes e rudes que se envolveram na conquista do Oeste poderiam escolher a ilegalidade como meio de vida e se tornar pistoleiros, proprietários inescrupulosos de terra e gado, ladrões etc. Nesse contexto, para ser eficaz, a justiça devia ser aplicada por homens tão fortes e arrojados quanto os fora da lei porque, caso contrário, somente atuaria contra os fracos. A força desses homens da lei residia na habilidade no uso do revólver e a diferença moral entre um zeloso defensor da ordem e um bandido da pior espécie nem sempre era muito ampla.
As histórias e lendas em torno desses heróis idealizados da conquista do Oeste se reproduzem nos filmes de faroeste e no imaginário da população e este fato é amplamente demonstrado pelos milhares de filmes do gênero produzidos por Hollywood desde a invenção do cinema, em 1895. São obras que carregam forte maniqueísmo -- a separação nítida entre bem e mal -- evidenciados nos embates entre, de um lado, os idealizados homens de bem, empreendedores, moral e fisicamente fortes e, de outro, seus inimigos, os maus, pistoleiros, aventureiros, sem escrúpulos e, acima de tudo, os índios selvagens e cruéis. Ao herói quase assexuado (tomem o exemplo de John Wayne) se opõe o bandido sexualmente desregrado, quando não é estuprador de donzelas.
Na sociedade americana persiste até hoje um conjunto de valores provenientes da conquista do oeste, incluindo, por exemplo, a obstinação por armas de fogo. E é comum dirigentes políticos norte-americanos sustentarem a existência da divisão nítida entre o bem e o mal. Bush, o filho, chegou a cunhar a expressão “eixo do mal” para caracterizar os inimigos dos Estados Unidos: Coréia do Norte, Irã e Iraque.
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A homossexualidade de Phil confronta a imagem propagada na coletividade que associa diretamente masculinidade com o conquistador do Oeste. Nessa realidade, não cabe a homossexualidade e, por isso, a descoberta de sua homossexualidade pelo grupo seria catastrófica. Procura então mostrar masculinidade lançando mão de trejeitos próprios dos destemidos conquistadores do Oeste.
Face ao que escrevi acima, pode-se compreender o enorme sofrimento de Phil frente ao conflito por ele vivido: de um lado, a pressão social contra a homossexualidade que vigorava nas primeiras seis ou sete décadas do século 20, fortemente agravada no meio rural em que ele vive e pelos valores de masculinidade que o meio exige. De outro, sua tendência irreversível à homossexualidade, contra a qual não consegue lutar. A extirpação violenta da sexualidade, mostrada na chocante cena da castração de um bezerro, é metáfora da inquietação de Phil contra sua própria sexualidade. Ele quer tatear essa castração para vivê-la mais intensamente e por isso não usa luvas.
Continua na próxima semana.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec