Filmes da Netflix: ‘Inspire Expire’ (parte 1 de 5)
Este filme de 2018 da islandesa Isold Uggadottir conta a história do encontro de duas mulheres que pertencem a duas realidades sociais totalmente diferentes: Lára, uma islandesa e mãe solteira de um menino, Eldar, que luta contra uma situação econômica extremamente difícil; e Adja, uma imigrante negra de Guiné-Bissau que tem uma filha.
O fato de o filme ser dirigido por uma mulher e de ter duas protagonistas mulheres de etnias diferentes, de continentes diferentes e em cujas vidas a maternidade desempenha papel crucial, sugere que ele possa conter um viés feminista. Ao mesmo tempo, possibilita discursos sobre a catástrofe das migrações no mundo contemporâneo, sobre a miséria presente em uma sociedade de menos de 400 mil habitantes e de sétima renda per capita do mundo (seis vezes maior do que a brasileira) ou sobre a aceitação ou repúdio da homossexualidade feminina em duas sociedades totalmente diferentes (Lára e Adja são lésbicas).
Meu objetivo é propor um sentido a um filme e não propagar ideologias. E, ainda que meus conhecimentos sobre as várias vertentes do feminismo sejam limitados, considero que a corrente feminista que mais bem se aplica ao filme é a da norte-americana Nancy Fraser e outras autoras da esquerda, porque é capaz de agregar, sob uma mesma vertente feminista, aspectos sociais presentes no filme como migrações, preconceito racial, miséria, sexualidade, maternidade e outros.
A seguir farei uma brevíssima (e infelizmente incompleta) explanação do que seja essa modalidade de feminismo. Para tanto, usarei como fonte o livro “Feminismo para os 99% - um manifesto” das norte-americanas Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. O leitor encontrará o livro na Internet e resenhas muito boas em texto ou no Youtube.
O objetivo aspirado em “Feminismo para os 99%” é, como o nome indica, o da criação de um feminismo internacional que se proponha a abolir o neoliberalismo das últimas quatro décadas que levou à condição em que 1% da população mundial detém metade da riqueza do planeta e em que a desigualdade não para de crescer. O feminismo internacional seria a continuidade das etapas anteriores da luta pela igualdade e o reconhecimento das mulheres. Procura atuar sobre a queda livre dos padrões de vida, o desastre ecológico iminente, guerras, migrações em massa enfrentadas com arame farpado, racismo, xenofobia. Procura também resgatar os direitos sociais e políticos perdidos no neoliberalismo que haviam sido duramente conquistados nas democracias capitalistas ao longo do tempo, principalmente pela esquerda: socialistas, comunistas, anarquistas etc.
O que as autoras propagam é um feminismo para que as mulheres, independentemente de classe social, tenham possibilidade real de decidir o que querem fazer de suas vidas, incluindo a possibilidade real de compatibilizar trabalho e cuidado familiar, de ter condições materiais adequadas de se dedicarem à carreira profissional e também cuidarem de suas famílias, se assim o desejarem. Por isso, as autoras criticam acidamente o que chamam de “feminismo liberal”, que consideram o grande inimigo a ser combatido, porque se amoldam ao neoliberalismo e ignoram as aspirações da vasta maioria das mulheres que integram ao grupo dos 99%.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec