Restauração: uma requalificação urbana
A autenticidade é objeto das pesquisas (...) e escolher a melhor doutrina depende de haver -- ou não -- pleno conhecimento de cada obra ao tempo em que foram construídas
A população da cidade de São Paulo (SP) ganhou novo empreendimento imobiliário, ainda em construção, que abrigará a maior reserva de floresta urbana no mundo, junto a edifícios de inédita categoria comercial no País. Trata-se do luxuoso megacomplexo Cidade Matarazzo, cujos comentários seguem abaixo.
Aludido projeto surgiu quando da compra, em 2011, do Hospital Umberto Primo (Hospital Matarazzo) pelo empresário francês Alexandre Allard, que pretende requalificá-lo num complexo comercial, cultural, hoteleiro e residencial. Havia, entretanto, entraves a serem solucionados.
Mencionado hospital, projetado pelos arquitetos Giulio Micheli e Luigi Pucci e construído em 1904 pela Sociedade de Caridade Italiana para atender aos imigrantes italianos e descendentes, é distribuído em alas e tem estilo neoclássico.
No terreno também há o edifício da Capela de Santa Luzia e o da Maternidade Condessa Filomena Matarazzo. O primeiro foi erguido em 1922, em estilo neoclássico, projetado pelo arquiteto Giovanni Battista Bianchi. O segundo, erguido em 1943 a pedido da própria condessa, também o foi em estilo neoclássico.
Em razão da importância histórica, no ano de 1986 o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) realizou o tombamento de todo o complexo -- hospital, maternidade e capela -- e impediu intervenções que o descaracterizassem. Em 1993 foi à falência e o imóvel ficou sem uso até a aquisição pelo mencionado empresário.
Após contato com o Condephaat e obter autorização para algumas alterações na estrutura dos edifícios e novas edificações no imóvel, foram aceitas a demolição do necrotério, a antiga clínica pediátrica e uma construção da década de 70 do século XX de estilos diversos (heterogêneos). Em relação à capela, teve que ser restaurada em integral obediência às suas características originais.
À luz do vídeo publicado na internet (https://youtu.be/4p_qXNaUYdk, acessado aos 03.03.2022), a restauração da capela deve ter seguido as doutrinas da unidade estilística de Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (admitia o uso adequado da obra restaurada) enquanto a da maternidade, as do restauro filológico de Cesare Brandi. Quanto à restauração ainda não concluída do hospital, demonstra obediência ao mencionado italiano por atualizar a obra com criatividade e dar novo uso.
Tais restaurações visam dar uso a elas em razão do valor histórico e da função antropológica que possuem e da atualização ao tempo presente; o valor simbólico do conjunto compõe a referência urbana quanto à localização e à temporalidade que contém e representa. A autenticidade é objeto das pesquisas, estudos e decisões dos restauradores e escolher a melhor doutrina depende de haver -- ou não -- pleno conhecimento de cada obra ao tempo em que foram construídas.
Em suma, a restauração dos edifícios da Maternidade Condessa Filomena Matarazzo, da Capela de Santa Luzia e do Hospital Umberto Primo dependem do pleno conhecimento de cada obra, para a equipe de restauradores não incorrer no falso histórico nem remover a autenticidade delas. Se assim não se proceder, ter-se-á perdido a referência dada pelo valor simbólico e modificado a memória da população. Nada a mais.
Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista.