O que é o mistério cristão?
A nossa salvação não está ligada primaria e originariamente à doutrina ou à moral; está ligada a Jesus Cristo, à sua vida histórica e à sua Páscoa
Dom Julio Endi Akamine
No início da missa o padre convida: “Reconheçamos os nossos pecados para celebrar dignamente os sagrados mistérios”. O que significa esta expressão “sagrados mistérios”?
Os cristãos não usam a palavra “mistério” no sentido de “enigma”, de algo desconhecido. Mistério, nesse sentido, indicaria um problema a ser solucionado através de um conhecimento ainda a ser conquistado. Diante daquilo que não conhecemos, experimentamos a nossa limitação e sentimos a necessidade de resolver o enigma. Enquanto não desvendamos o enigma, permanece a sensação da insuficiência e da carência humana.
Totalmente diferente é o significado do mistério em sentido cristão. Não é o ser humano que procura se apossar do mistério, é o mistério que se aproxima dele de tal modo que este compreende que o mistério deve permanecer porque somente assim é significativo e importante para a sua felicidade. Assim a tentativa de resolver o mistério, além de ser ineficaz, nega a felicidade do encontro pessoal.
Reconhecer algo ou alguém como mistério implica, portanto, renunciar a tentativa de se apossar dele e de dominá-lo. De fato, o mistério de Deus nunca é objeto de posse e de domínio.
Para que você entenda melhor esse aspecto do mistério cristão, tente refletir sobre as relações humanas. Uma relação humana autêntica pressupõe que o outro não seja reduzido a objeto de nossa ação ou de nosso conhecimento. O outro não pode ser manipulado como objeto, nem pode ser dominado como propriedade ou coisa, tampouco pode ser violado em sua intimidade como se fosse um problema a ser resolvido. O outro não está à minha disposição como algo a ser devassado pelo meu conhecimento.
Podemos falar, portanto, de mistério da pessoa humana. Conhecemos o outro porque todas as suas manifestações nos dão acesso ao seu mistério, mas enquanto tal, a pessoa nunca deixa de ser mistério. O mistério pessoal é humanamente acessível somente por partilha livre da própria intimidade. Com efeito, podemos ter muitas informações sobre a vida de uma pessoa, mas só teremos acesso ao seu mistério pessoal quando formos aceitos por ela numa relação de confiança e de amizade. Ao sermos acolhidos pelo outro, este se revela como mistério pessoal através de uma variedade de concreções e de manifestações pessoais: palavras, gestos, ações, silêncios, olhares, sacrifícios.
Se isso é verdade em relação a uma pessoa humana com muito mais razão ainda em relação a Jesus Cristo. Para o cristão, conhecer Jesus Cristo não significa possuir informações sobre a Sua vida e Sua missão. Por mais valiosas que possam ser tais informações, o cristão tem consciência de que o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo o remete ao Seu mistério pessoal. Para ter acesso ao Seu mistério, o fiel sabe que não pode se aproximar dele como de um objeto.
Os evangelhos foram escritos por homens que foram dos primeiros a receber a fé e que quiseram partilhá-la com outros. Tendo conhecido, pela fé, quem é Jesus, puderam ver e fazer ver os traços do seu mistério em toda a sua vida terrena. Tudo, na vida de Jesus, é sinal do seu mistério. Através dos seus gestos, milagres e palavras, foi revelado que “n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Cl 2,9). A sua humanidade aparece, assim, como “sacramento”, isto é, como sinal e instrumento da sua divindade e da salvação que Ele veio trazer. O que havia de visível na sua vida terrena conduz ao mistério invisível da sua filiação divina e da sua missão redentora (CatIgCat 515).
Assim, com a expressão “mistérios da vida de Cristo”, indicamos todos os eventos da vida de Jesus desde a concepção e nascimento até a sua glorificação.
A nossa fé está vinculada a Deus que não é uma ideia ou uma abstração. A nossa salvação não está ligada primaria e originariamente à doutrina ou à moral; está ligada a Jesus Cristo, à sua vida histórica e à sua Páscoa. Deus se revelou em um homem concreto, que viveu em um lugar e em um período histórico determinado, que se comportou de um modo próprio, que teve uma mãe e foi reconhecido como o “filho do carpinteiro”. Esse Jesus de Nazaré é, em sua concreta existência histórica, o Cristo de Deus. Tudo isso está incluído quando falamos de “mistérios da vida de Cristo”, e nós temos que prestar máxima atenção aos mistérios de Cristo porque “tudo na vida de Cristo é sinal do seu Mistério” (CatIgCat 515).
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba