A culpa é sua, leitor!

Retrocedo 250 anos e vejo Thomas Jefferson, John Adams e Benjamin Franklin discutindo uma nova república. Analiso o jornal de hoje e noto o embate entre Donald Trump e Joe Biden

Por Cruzeiro do Sul

Leandro Karnal.

 

“Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para não se escrever.” Quem redige assim é Rubem Braga, um dos maiores nomes da crônica nacional. O texto abre a coletânea brilhante que Augusto Massi elaborou pela editora Autêntica: “Os sabiás da crônica”. A antologia reúne, além do homem sem assunto, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira. Uma aula completa de escrita e de pensamento. Para melhorar, o volume é precedido de um estudo no qual Augusto Massi faz um panorama da crônica, da cultura e da imprensa brasileira. Texto realmente brilhante pela síntese e pelas ideias.

Volto à falta de assunto. Braga confessa que deve ser o carnaval ou o calor. A busca de um tema também está no texto inicial de Vinicius de Moraes. Diz o poeta: “Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica ‘não baixa’”. Parece mal coletivo, pois o primeiro texto escolhido de Fernando Sabino trata do “estranho ofício de escrever” e daqueles ‘condenados à crônica diária”. Mais: o livro confessa que alguns dos grandes cronistas citados chegavam a pedir texto de outro para emergências!

Logo, você já percebeu dileta leitora e estimado leitor: nomes brilhantes e de primeira linha reclamam da falta de assunto. Uma coisa é o literato bissexto que, um dia, ao entardecer, senta-se ao computador e, tomado de uma centelha divina, rabisca seu texto e depois vai limando, escandindo, reequilibrando e, por fim, considera terminada a obra. Aproveitou uma inspiração e teve muito tempo para decantá-la. É a situação ideal: o texto flui dentro do espaço amplo e cômodo do momento.

O escritor descrito nas linhas anteriores, provavelmente, não é um escritor profissional. Pode até ser muito bom, porém, vive de outra fonte. Namora quando a libido está em alta. O profissional namora porque chegou o horário de beijar, independentemente do desejo.

A crônica da falta de assunto do capixaba Rubem Braga é de 1934. Fará, em breve, 90 anos. O livro me impressionou por vários motivos, inclusive pelas dificuldades confessadas de grandes nomes da cultura brasileira. Outra coisa: mudou a liberdade com o público. Talvez seja efeito da nossa “felicidade tóxica” ou do “politicamente correto”. O grande Braga pertencia a outra cepa e, notando o texto emperrado, ataca o... leitor: “Eu quero, pelo menos hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que, se eu os aborreço, vocês me aborrecem terrivelmente mais. Amanhã eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso: posso falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia. Saibam desde já que eu farei isto porque sou cretino por profissão; mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica. Até amanhã. Passem mal”.

Acho que estamos em outro momento. Não se pode desejar que o leitor morra ou tenha doenças graves. O escritor deve captar a benevolência do público, como definem as normas da retórica clássica. Quando Bernardo Carvalho disse, em mesa da Flip (2016), que “não me interessa o leitor”, causou um alvoroço. A demanda do público e do mercado contaminaria a boa produção e ele, bom autor da chamada “alta literatura”, queria estar um pouco distante das pressões. É um gesto ainda mais elaborado do que o desejo cheio de fígado de Rubem Braga.

Impossível não pensar com certa melancolia. Os escritores reunidos na coletânea estavam juntos para uma foto na cobertura de Rubem Braga, em Ipanema (RJ). O ano era 1967. Um jovem estava junto do evento: Chico Buarque. Ele já começava os preparativos da célebre peça “Roda viva”. O evento da foto era a recém-fundada editora Sabiá. Muita gente talentosa e inteligente reunida. Talvez seja a eterna melancolia do momento presente retratada no filme “Meia-noite em Paris” (2011, Woody Allen): o passado parece mais interessante e com gente mais brilhante pela perspectiva que a distância nos oferece. Retrocedo 250 anos e vejo Thomas Jefferson, John Adams e Benjamin Franklin discutindo uma nova república. Analiso o jornal de hoje e noto o embate entre Donald Trump e Joe Biden. Pior: vejo o toque genial de autores que se sentindo esmagados pela falta de assunto fazem ótimos textos sobre o vazio e, hoje, ao passar os olhos pela internet, percebo que o vazio virou ponto de honra, motivo de vaidade e até de exibição orgulhosa.

Encerro com um toque dos velhos cronistas menos voltados ao ibope: a culpa é sua leitor/leitora, exclusivamente sua, totalmente sua. Trump, textos ruins, falta de gente brilhante no mundo: tudo culpa sua. Se você fosse realmente agudo e voltado ao crescimento da espécie humana, estaria relendo Rubem Braga e Fernando Sabino e nunca Leandro Karnal! Viu no que dá a falta de assunto? Hoje estou sem esperança.

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros