O pacote do veneno afeta bem mais do que a sua alface
Cerca de 30% dos agrotóxicos aprovados no Brasil nos últimos cinco anos são proibidos na União Europeia
Paola Carosella
Patrícia Jaime
Ricardo Abramovay
Há tempos temos nos afastado, cada vez mais, da forma como nossos alimentos são elaborados. A carne crua na bandeja de isopor esconde sua relação com o boi; o leite na caixinha não parece guardar qualquer vínculo com o animal do qual se origina. Com os vegetais não é diferente: sabemos que eles vêm da terra, é claro, mas não temos a real noção sobre como foram produzidos, sobre quais e quantos produtos químicos foram aplicados para possibilitar seu cultivo. O imaginário de que a nossa alface é produzida por uma família feliz, que vive da terra, corresponde cada vez menos à realidade. E toda essa situação, infelizmente, tende a piorar.
Há dois meses, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6.299/2002, conhecido como “pacote do veneno”. O texto, que tramita há 20 anos no Congresso Nacional, foi aprovado em regime de urgência -- e, agora, está sendo apreciado pelos senadores. É inegável que uma lei que regule o uso de agrotóxicos no campo é necessária, mas, definitivamente, não essa. O mundo inteiro está em busca de alimentos menos -- e não mais -- dependentes de agrotóxicos.
O pacote do veneno tem um objetivo: facilitar a aprovação de agrotóxicos, tornando-a mais rápida e menos criteriosa. Para isso, tira do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o poder de decisão sobre o registro de agrotóxicos, deixando a palavra final apenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Sim -- quem quer usar agrotóxicos se torna o único responsável pela liberação.
Além disso, o texto estabelece prazos irreais para forçar a aprovação de venenos, conferindo um registro temporário para todo produto que não for analisado no ínfimo período de dois anos -- desde que o veneno seja reconhecido por ao menos três países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil não faz parte. E a cereja do bolo: a mudança do termo “agrotóxico” para “pesticida”.
Não há dúvidas sobre o resultado de uma política como essa. Cerca de 30% dos agrotóxicos aprovados no Brasil nos últimos cinco anos são proibidos na União Europeia. Em 2015, por exemplo, o glifosato foi considerado cancerígeno pela Agência Internacional de Câncer e está na base das nossas lavouras de soja.
O argumento de que facilitar a liberação de agrotóxicos favorece o avanço da produção reflete a apologia de um modelo que se revelou insustentável, ameaçador e concentrador. É verdade que o sistema agroalimentar mundial conseguiu reduzir a fome desde os anos 1960, por meio da Revolução Verde, que permitiu a ampliação espetacular das safras de trigo e arroz na Índia e no México, e de soja, na América Latina.
Essa conquista, no entanto, foi alcançada por meio da extinção em massa da agrobiodiversidade, substituída por culturas simplificadas, homogêneas, dependentes de poucas variedades e apoiadas pelo uso crescente de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Nesse modelo, a palavra de ordem é invariável: mais do mesmo, com cada vez mais veneno.
Mais do que causar a erosão da biodiversidade do planeta, a concentração produtiva é um fator de risco global crescente: quanto mais venenos nas lavouras, mais emergem fungos, ervas e insetos resistentes a venenos, num círculo vicioso que o mundo quer -- e precisa -- interromper. Não é por outra razão que a União Europeia está fazendo da agroecologia um objetivo estratégico de sua organização agroalimentar e que a China igualmente decidiu reduzir (e não ampliar) o uso de agrotóxicos.
Os impactos nocivos desse sistema alimentar não se restringem ao meio ambiente: chegam à sociedade como um todo. Nas periferias, é cada vez mais comum o consumo de alimentos ultraprocessados -- nutricionalmente pobres, produzidos à base de commodities e responsáveis pela alta prevalência de doenças crônicas, como hipertensão e diabete, entre outras. Hoje, já existem evidências de que agrotóxicos também estão presentes em ultraprocessados, mesmo naqueles com forte apelo infantil.
O maior desafio de nossa agropecuária é promover a transição para formas de produção que se apoiem no conhecimento e não na destruição da biodiversidade. Não é aprovando mais que teremos um sistema alimentar justo e sustentável, mas fazendo valer políticas públicas importantes, como os conselhos de segurança alimentar e nutricional ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar, e até criando políticas que beneficiem a agricultura familiar, o emprego de mais trabalhadores, a produção descentralizada e agrobiodiversa, a distribuição eficaz de alimentos. Apoiar o pacote do veneno é fomentar um sistema falido, nocivo e insustentável, e que serve apenas ao lucro de poucos.
Paola Carosella, cozinheira, Patrícia Jaime, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP
Artigo publicado orginalmente no Jornal da USP