O ser e o tempo
Eclesiastes é o primeiro e necessário passo rumo ao Deus vivo e verdadeiro, pois o ser humano não buscará o Divino Médico enquanto não admitir que está desesperadamente doente
Sempre achei o Eclesiastes um livro estranho e incômodo. A cada vez, porém, que o releio, fico cada vez mais convencido de que é um livro muito atual.
Eis uma afirmação muito reveladora: “Tudo tem um tempo. Há um tempo para tudo que acontece debaixo do céu” (3,1). Trata-se de um retrato terrivelmente triste da nossa vida: estamos condenados a assistir ao desfile mudo e implacável de eventos opostos: o nascimento e a morte, o plantio e a colheita, a doença e a cura, a ruína e a reconstrução, o choro e o riso, o luto e a dança, a preparação e a batalha, o abraço e a separação, a busca e a perda, a acumulação e o desperdício, o rasgo e a costura, o silêncio e o discurso, o amor e o ódio, a guerra e a paz (cf. 3,1-11). Nós não temos poder algum sobre essa sucessão de eventos tristes e alegres nem conseguimos fixar nada nesta vida, pois o tempo destrói tudo o que o próprio tempo construiu. Do nascimento à morte, nós estamos submetidos ao tempo, que flui e tudo destrói e reconstrói continuamente. O tempo nos recebe, nos envolve, nos empurra e, por fim, nos expulsa dele, para recomeçar tudo de novo.
Envolvidos e submetidos ao tempo, a nossa existência é marcada pela sua imutável mutabilidade. Pior ainda. Até mesmo o ódio, as guerras e os assassinatos estão fixados no nosso tempo e que não podemos fazer nada para mudar isso.
Segundo o Eclesiastes, podemos ter duas atitudes para enfrentar esse inevitável vaivém de opostos: ou agir e reagir para dominar o curso dos acontecimentos de nossa vida, ou compreendê-lo com a nossa razão para lhe dar sentido e significado.
A avaliação do Eclesiastes, porém, é um choque de realidade. Tentar dominar o curso dos acontecimentos é inútil, pois nós não podemos acrescentar, diminuir ou mudar o que Deus determinou para nós. Tentar dar algum significado aos acontecimentos com a nossa razão é impossível, pois o nosso pensamento limitado não pode superar o tempo incompreensível.
“As coisas que Deus fez são todas boas no tempo oportuno. Além disso, Deus dispôs que fossem permanentes; no entanto o homem jamais chega a conhecer o princípio e o fim da ação que Deus realiza” (3,11). Segundo essa passagem, até a guerra, os assassinatos e o ódio são bons no tempo oportuno! É impossível dar significado a isso!
Por isso, para o Eclesiastes, o único remédio é abandonar a ambição de agir e de ressignificar, contentando-se com as magras alegrias desta vida temporal que nos foi concedida por Deus. “Contempla as obras de Deus: ninguém poderá endireitar o que ele encurvou. Num dia feliz desfruta dos bens e, no dia da desgraça, reflete: Deus fez tanto um como o outro, de tal modo que ninguém pode descobrir alguma coisa do seu futuro” (7,13).
O livro do Eclesiastes descreve com um realismo assustador o ponto de chegada de uma religião paganizada que perdeu ou que nunca conheceu a força do Evangelho. Essa religião é tediosa e supérflua: Deus está longe e não se importa; Ele pode ser conhecido, mas não se revela como Pessoa que ama e pode ser amado; Ele é infinito, mas não preenche o abismo do coração humano: “um abismo que chama outro abismo” (Sl 42). Esse Deus é como a lua: está lá no céu, não aqui na terra; controla as marés da vida, mas não tem relação pessoal conosco; existe, mas não há encontro face a face. No fim das contas, Ele não se importa conosco. É possível crer nesse Deus e, ao mesmo tempo, se desesperar. É o que acontece com o Eclesiastes: acredita de coração em Deus, mas não vê o sentido da própria existência.
O Eclesiastes vive num mundo onde Deus se cala. Não há Revelação alguma, há somente a razão e a observação dos sentidos. No livro de Jó, Deus também se cala, exceto no começo e no fim do livro. E exatamente porque Deus dirige a sua palavra a Jó, este tem tudo, apesar de ainda estar sobre o monte de esterco e se raspar com um caco de telha (Jó 40,6-42,6). No Eclesiastes, o ser humano, mesmo que possua tudo, não tem nada, porque Deus não lhe fala.
Toda a Bíblia é Revelação divina, mas, no Eclesiastes, Deus nunca fala: só há monólogo, nunca diálogo. Deus, na sua providência, fez com que esse livro desconcertante entrasse no Cânon da Escritura, porque ele é Revelação Divina no seu contrário. Eclesiastes é Revelação divina precisamente na medida em que é ausência de Revelação. Trata-se de uma graça pela desgraça, de uma Revelação através das trevas, de uma luz que obscurece. Deus, neste livro, nos revela o que a vida é, quando Deus não se revela: vaidade das vaidades. Nada de novo debaixo do sol!
O Eclesiastes é o primeiro e necessário passo rumo ao Deus vivo e verdadeiro, pois o ser humano não buscará o Divino Médico enquanto não admitir que está desesperadamente doente do nada e da falta de sentido. Com efeito, segundo Nietzsche, o niilismo é “o convencimento da inutilidade, a incoerência, o sem-sentido e o sem-valor da realidade”. A falta de um grande sentido (vaidade das vaidades) é fonte da pior morte. Os místicos vislumbraram em suas visões sobre o inferno que ele não é fogo ou demônios com tridentes, e sim almas vagando na escuridão, sem destino, sem esperança, sem propósito. Essa imagem do inferno é mais horripilante do que o fogo e o enxofre porque, no fim das contas, é a mais verdadeira.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba