Curadores
Aceito a responsabilidade de ser vidraça exposta. Entendo as vontades de interferência
Ocupar um espaço público parece ter um poder magnético: você atrai coisas. Sou atingido por diversas “curadorias”. As pessoas me indicam temas e criam interditos. Não é a saudável crítica a algo publicado. Trata-se do desejo de dirigir o vir a ser.
Explico-me. Um colega é militante ecologista. Estuda, escreve com zelo e muita profundidade sobre o tema. Li um livro dele e achei excelente. Porém... ele manda textos incisivos do estilo: “Leandro, nos dias de hoje, quem não defende o meio ambiente é uma pessoa sem caráter. Todos os textos devem ser sobre a defesa da Amazônia”.
Acho necessária a defesa do nosso patrimônio natural, contudo nem sempre é meu único tema. Já entrevistei nomes relevantes da área. Ele, todavia, acha fraca a iniciativa porque “perco meu tempo” com recortes culturais, religiosos ou de comportamento. É o meu “curador verde”.
Os orientadores políticos são os mais abundantes. É um crime, dizem uns, que eu não ataque, em todos os meus canais, a corrupção do PT. “Absurdo você não utilizar sua força midiática para denunciar Bolsonaro”, garante outro grupo. “Você evita afrontar com força o STF” -- escreve-me uma pessoa. “Faça um artigo contra Alexandre de Moraes!”
A lista continua. Há listas que meus curadores possuem de inimigos. Estes, para eles, devem ser destruídos. Na guerra, insistem, minha catapulta deve ser cooptada.
Faço um artigo sobre ateísmo, e alguém me diz que uso meu espaço para proselitismo. Escrevo sobre Jesus, e meus curadores céticos dizem que faço jogo duplo. Se eu me inclinar ao candomblé, é -- para outros -- pura concessão populista para a “esquerda mimizenta”. Falar de Arte? “Careca elitista decadente”, tentou insultar-me uma menina com identidades políticas mais radicais.
Mais uma vez: um texto em jornal é um diálogo público. Faz parte das normas da comunicação que eu responda por tudo aquilo que publico. Pelas minhas ideias e afirmações, presto contas. Aceito, assim, a enorme responsabilidade de ocupar espaço tão importante como este. Quem canta recolhido, no fundo da sua garagem e em voz baixa, não pode e nem deve ser criticado. Quem vai para a calçada e solta a voz está, necessariamente, submetido aos críticos musicais do passeio público. Uso a metáfora para garantir: criticar textos publicados é um direito lícito de toda leitora ou todo leitor.
Minha constatação é sobre a curadoria do que eu possa ou deva falar. Uma espécie de censura prévia, mas não de crítica póstuma. Aceito a responsabilidade de ser vidraça exposta. Entendo as muitas vontades de interferência que tentam a tantas almas. Alguns casos são até divertidos. Um jovem leitor me escreve dizendo que não confia em um filósofo de terno igual a mim. Respondo tranquilo que sou historiador e que ele está certo: não deve confiar em ninguém, de terno ou de croc. O ceticismo é uma metodologia boa nas ciências humanas. Lembrei que até o “diabo veste Prada”, mas ele não acompanhou minha ironia ou, talvez, .. prefira Armani.
Feitas as ressalvas e assumindo as responsabilidades, quereria sempre ressaltar que a agenda de um cronista de jornal pode não ser a sua. Cada leitor é livre para buscar os autores com que se identifique na sua visão de mundo. O contraditório é bom, uma das bases do direito e da democracia. A mesma liberdade de leitura que preside ao sagrado gosto individual preexiste, igualmente, à escrita. Sou livre para escrever tudo aquilo que não ferir a lei. Você possui livre-arbítrio para acessar o que bem entender. Seria equivocado obrigar um vegetariano a consumir carne e seria, da mesma forma, estranho um vegano frequentar uma churrascaria e afirmar que nada encontra ali de bom para consumir.
Conciliar gosto e local é uma arte. Harmonizar valores e autores também é importante. Há pessoas na imprensa que me irritam muito. Eu os evito. Outros produzem coisas de que discordo, porém são inteligentes e me fazem pensar. Por fim, há os que parecem ter limado quaisquer arestas com o meu mundo e dizem coisas que eu subscrevo na íntegra.
Imagino ser válido tentar povoar as páginas do jornal com outras escolhas. É o seu caso? O ideal seria, claro, você enviar à direção do jornal seus próprios textos que consagrassem sua visão de mundo e vieses analíticos. É um caminho interessante. Crie seus podcasts, abra seu canal de vídeos, escreva textos, elabore palestras e mostre como coisas mais relevantes podem ser ditas. Até lá, siga o conselho de uma professora de ioga, em uma aula que tive na praia com a família: “Aceita, entrega, confia e agradece”.
Abandonar o conforto do estilingue é inquietante. “Posso sempre criticar, é meu direito sagrado e constitucional.”
Escreva textos! Publique! Crie! Ganha o Brasil e ganha você. Viva a liberdade de ler e, mais ainda, a liberdade de fazer melhor. Aceita o desafio? Cultive a esperança de um jornal ainda melhor. Faça curadoria de si!
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros