A fé não é cega. Ela nos dá olhos!

Trata-se de uma responsabilidade que faz o cristão dialogar não para ter razão, mas para mostrar as razões

Por Cruzeiro do Sul

Dom Júlio Endi Akamine.

 

Muitas vezes a fé é descrita como um salto no escuro. Isso é verdade? A esse propósito, o papa João Paulo I, em uma de suas catequeses, citou o poeta romano Trilussa:

Aquela velhinha cega, que encontrei
na tarde em que me perdi no meio do bosque,
disse-me: — Se o caminho não o sabes
vou acompanhar-te eu, que o conheço.
Se tens a força de vir atrás de mim
de vez em quando te chamarei,
até lá ao fundo, onde há um cipreste,
até lá em cima, onde há uma cruz.
Eu respondi: Assim será... mas acho esquisito
que me possa guiar quem não vê...
A cega, então, pegou-me na mão
e suspirou: — Caminha.
Aquela velhinha cega era a fé”.

Como poesia, é graciosa. Como teologia, defeituosa. Defeituosa porque, quando se trata de fé, quem nos guia é Deus (cf. papa João Paulo I, audiência de 13 de setembro de 1978).

De fato, se dissermos que a fé é cega, estamos acusando Deus de exigir de nós o sacrifício da razão. Crer não é uma atitude cega, porque Deus quer que respondamos com todo nosso ser, isto é, com nossa inteligência e vontade, com nossa liberdade, com nossos sentimentos e com nossa razão. A fé autêntica nunca torna as pessoas fanáticas. Exatamente o contrário. Trata-se de uma compreensão errada pensar que a fé exerça sobre as pessoas uma influência que as conduza a uma adesão a um sistema de ideias absurdas. É a própria natureza da revelação cristã, como proposta divina respeitosa e humilde, como convite desafiador e atraente, que reclama uma resposta integral e decidida, uma aceitação razoável e certa do ser humano.

Quem crê pensa, e, pensando, acredita. Evidentemente há muitas coisas na fé que causam dificuldade, pois a fé nos remete a realidades que transcendem o mundo das coisas, das evidências científicas, do utilitarismo redutivo, do imediatismo eficientista. Além disso, ela nos chama a comportamentos que nem sempre estão na moda e vão contra o senso comum do egoísmo. Em situações limites, pode inclusive conduzir a pessoa a sacrifícios muito grandes, a renúncia de amores menores por um amor maior.

“A fé procura compreender” (Sto. Anselmo, Proslogion). É inerente à fé o desejo de conhecer melhor Aquele em quem acredita e de compreender melhor o que Ele revelou. Um conhecimento mais profundo exigirá, por sua vez, uma fé maior e cada vez mais envolvida no amor. Mesmo que a fé não seja produto da razão humana, o mistério da encarnação revela que Deus vem ao encontro do homem e lhe fala como a um amigo (cf. DV 2) e não como um tirano que coage e obriga a crer no absurdo.

Se a revelação não é uma gnose nem uma invenção mítica que adormece os anseios e as angústias do homem, mas a irrupção pessoal e amorosa de Deus na história para dar sentido a nossas esperanças e nossas lutas, é então coerente que a revelação possa ser apresentada aos homens de nosso tempo como algo sensato e que a fé seja significativa para o ser humano. A graça da fé abre “os olhos do coração” (Ef 1,18; CatIgCat 158).

Nesse sentido, o cristão deve estar sempre pronto a dar as razões da sua fé. O esforço de dar as razões da sua fé nem sempre é fácil, mas é isso que nos permite dialogar com os que não partilham as mesmas convicções. Trata-se de uma responsabilidade que faz o cristão dialogar não para ter razão, mas para mostrar as razões.

O cristão, portanto, sempre se pergunta se o conteúdo de sua fé é aceitável e inteligível, e, ao mesmo tempo, se pode encontrar na história indícios que o ajudem a aceitar essa irrupção de Deus que deu origem a um novo ser e uma vida nova. Ele se pergunta também se é possível encontrar na revelação bases certas e suficientes para poder correr o risco da fé.

Refletir sobre o motivo de crer significa, portanto, arrancar a fé do mundo do arbitrário, do absurdo e do subjetivismo desvairado. Crer tem uma coerência com a estrutura humana, racional e livre, e, por isso, tal ato pode passar pelo crivo da racionalidade concreta, histórica e prática. A fé supera a razão, mas não a destrói. A fé não é fruto da razão, mas o dom de Deus não a paralisa. A fé transcende a razão e, por isso mesmo, a estimula e a eleva.

Ante as atuais manifestações irracionais de vilipêndio a símbolos cristãos, ante a cultura do feio, do grotesco e do obsceno, ante os absurdos da guerra e da exploração humana, os cristãos devem reagir com o melhor de si mesmos: a fé. No contexto de irracionalismo em que vivemos, a fé cristã deve assumir a tarefa de defender a razão humana.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba