A "mina" que mata o Brasil
A Convenção de Minamata entrou em vigor em 2017 e desde então muitos países têm trabalhado para interromper o comércio (...) e criar produtos sem mercúrio
Em 1988, Cazuza gravou o álbum “O tempo não para”. A música que deu o nome ao álbum solo do cantor foi composta por ele e Arnaldo Brandão, e Cazuza nunca foi tão atual quanto naquela época -- que loucura. Poderíamos discutir, concordar ou discordar de vários trechos da música, mas “eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades” tem tudo a ver com a gente, com a nossa sociedade, com a nossa política e com toxicologia.
No Japão, uma indústria chamada Chisso, por mais de 20 anos, contaminou a baía da cidade de Minamata, situada no arquipélago sul do país, com mercúrio orgânico. Logo, em especial a fauna marinha e consequentemente os humanos que se beneficiavam da baía e de seu entorno foram contaminados, já que o mercúrio, um metal tóxico e amplamente utilizado em países periféricos, é persistente no meio ambiente e se acumula nos organismos, ao longo da cadeia trófica.
Na primeira metade do século passado, essa exposição silenciosa e crônica ao mercúrio rendeu aos habitantes de Minamata sintomas graves de origem até então desconhecida, como convulsões, surtos de psicose, perda de consciência e febre; a longo prazo o mercúrio orgânico é um indutor de infertilidade e câncer. No entanto, esse mal na cidade de Minamata só foi caracterizado em 1956. Segundo relatos, 5 mil pessoas foram atingidas e, para além das vítimas que ficaram com sequelas graves, estima-se que o número de mortos tenha chegado a 900 pessoas.
Minamata ficou conhecida como um dos maiores desastres ambientais do planeta, e, em 2013, um tratado internacional sobre os riscos do mercúrio e seus compostos, além é claro de formas de proteção à saúde humana e ao meio ambiente, foi aprovado e assinado por 92 países, entre eles, o Brasil. A Convenção de Minamata entrou em vigor em 2017 e desde então muitos países têm trabalhado para interromper o comércio, aumentar a sensibilização pública, desenvolver capacidades institucionais e criar produtos sem mercúrio.
Porém, no Brasil, o tratado de Minamata não tem sido respeitado, aliás, se mina, segundo o nosso dicionário, significa conduto subterrâneo, de onde são extraídos combustíveis, minérios, metais, água e outros produtos, e mata, significa um extenso terreno coberto de árvores silvestres de diferentes portes; nós brasileiros e brasileiras já temos, não somente os fatos lavrados, mas na própria semântica das palavras mina e mata, a direção de nossa tragédia humana e ambiental em curso.
Os nossos (desrespeitados) indígenas, além de outras comunidades, incluindo os agressores diretos -- porque os indiretos estão protegidos -- estão sendo contaminados e terão sequelas e/ou morrerão pelas consequências do mercúrio utilizado no garimpo e do sangue derramado pelo ouro que não vale uma vida, mas destrói milhares e milhares. Essas pessoas morrem todos os dias e morrerão pelo egoísmo e indiferença direta ou indireta de nossa sociedade.
Aqueles que se levantam contra o sistema ilegal de garimpo ou da grilagem, narcotráfico, pesca e caça ilegais, por exemplo, são mortos e/ou deixados de lado. É uma guerra sangrenta no coração de nosso planeta. Ligue a televisão ou busque por notícias e você verá muito mais sobre isso. O que fazer, então, visando reverter alguma coisa? Nós precisamos diminuir a distância que existe entre esses acontecimentos e nossa vida, afinal de contas somos parte desse meio e toda essa realidade grita à nossa porta, aliás é possível ouvir os gritos.
Enquanto educadores, precisamos sensibilizar e aproximar nossos estudantes dessa e de outras realidades, e muitas vezes eu paro e penso: o que eu estou fazendo nesse sentido?
Éric Diego Barioni é professor doutor na Uniso, conselheiro e presidente da Comissão de Toxicologia no Conselho Regional de Biomedicina da 1ª Região (CRBM-1). (eric.barioni@prof.uniso.br)