Você é burro!

Chamar um aluno de burro só mostra nosso descontrole, despreparo e incompetência psíquica

Por Cruzeiro do Sul

Leandro Karnal.

 

Uma amiga comentou sobre o filho que estuda em uma escola privada de São Paulo. O adolescente parece ter entrado em atrito com o professor de Geografia. Em determinado momento, o educador disse que o menino era “burro”. Sempre devemos avaliar criticamente depoimentos, inclusive dos nossos filhos. Toda narrativa é subjetiva e enviesada pelos interesses. Quem conta seleciona, omite coisas e possui um objetivo político, quase sempre de exaltação de si e da sua inocência. Isso vale para um adolescente, um jornalista, um professor ou o presidente da República.

Existe a hipótese de o aluno estar falando a verdade. Houve testemunhos da frase. Como profissional da Educação há 40 anos, sei, perfeitamente, que a tensão de uma sala de aula pode levar um adulto a cometer desatinos verbais. Já testemunhei físicos, inclusive. É muito difícil lidar com um grupo de crianças e adolescentes. Um monge zen treinado há 70 anos na paz de um mosteiro perderia a calma.

Todo professor já se irritou. A maioria já gritou. Eu já fui muito agressivo em respostas e ironias. Essa é a “sociologia do pecador”, mas não sua justificativa. Estou tentando entender (a partir do meu lugar de fala profissional). A sala de aula é uma trincheira de guerra com fogo amigo, inclusive. Dito isso, temos de concordar: nenhum professor poderia dizer que seu aluno é burro. Primeiro porque é subjetivo: as inteligências são múltiplas; as habilidades são variadas.

Um aluno pode ser pior em Geografia, genial em Matemática, mas pode ser medíocre em ambas, por falta de estímulo. Einstein não foi o melhor aluno do mundo. Notas não avaliam inteligência, apenas adaptação a um sistema. O primeiro argumento é este: é muito impreciso classificar o aluno de burro.

O segundo argumento é a atividade-fim da escola. A instituição foi criada para estimular a inteligência e o conhecimento. Da mesma forma, a tarefa principal de um hospital é a saúde. Se o paciente está doente (ou o aluno não souber algo), é parte da missão central da instituição resolver o problema. Um aluno “que não sabe” é o ponto de partida do esforço pedagógico. Dizer que um paciente não está se recuperando é reconhecer que os esforços médicos estão falhando. Um aluno que não aprende leva a questionar seu processo cognitivo individual -- e o método escolar ao mesmo tempo. Apontar só um lado é, no mínimo, injusto.

Vamos ao terceiro argumento. A crítica pesada e pública não melhora o processo de conhecimento. Dizer que o aluno tem incompetência mental não resolve a questão, antes a piora. Burrice, se existente, não é uma escolha. É diferente da preguiça, por exemplo. Mesmo que alguém tivesse alguma limitação mental forte, constatá-la em público e de forma humilhante seria inútil; falaria apenas da minha violência e descontrole, nada resolveria; antes, pioraria a relação do alvo da crítica comigo, com a escola e com sua autoestima.

Eu disse que atacar alguém como burro é impreciso, subjetivo, foge à atividade-fim da escola e (ainda!) é argumento inútil. Encerro lembrando um embasamento jurídico contra a frase “‘você é burro”. A Lei 8.609 foi criada no dia 13 de julho de 1990. Ficou conhecida como ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente. O estatuto desenvolve normas a partir do artigo 227 da nossa Constituição em vigor, o qual estabelece o amparo à criança e ao adolescente como prioridade e um dever social e do Estado. O artigo 17 do ECA garante a inviolabilidade física, psíquica e moral dos menores. A lei segue proibindo castigo cruel ou degradante para crianças e adolescentes. Humilhações públicas são vedadas. Agressões verbais podem ser condenadas em tribunais. Se os argumentos iniciais não comoveram pais e educadores, este último tem mais força de coerção.

Quem lida com alunos perde a paciência. De novo, eu entendo, sem justificar, o descontrole. Se você se irrita com um ou dois filhos em casa, pense em 45 em uma sala quente no fim de uma manhã tensa. Um profissional da Educação deve ter um controle emocional acima da média, equilíbrio psíquico agudo, sabedoria humana excepcional e consciência do motivo de estar lá todos os dias na sala de aula. Os professores deveriam ter acesso a acompanhamento psicológico permanente, como parte de uma “cesta básica”. Há traumas de soldados em batalha e existem traumas pedagógicos.

Um aposentado do magistério deveria ser chamado de veterano de guerra, com medalhas vistosas. Dito isso, relembro a mim e a quaisquer colegas: nunca chamem um aluno de burro, pois isso apenas mostra nosso descontrole, despreparo, falta de conhecimento do ECA e incompetência psíquica.

Eu posso me considerar burro, é meu direito de consciência individual. Meu aluno é meu objetivo, minha função, meu destino profissional, meu foco. É errado considerá-lo burro e, pior ainda, dizê-lo em público. Crer na educação é, também, educar-se de forma permanente. Essa é minha esperança, ainda que eu tenha sido burro muitas vezes como mestre. Alunos e professores podem melhorar sempre.

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros