As palavras e nós
A língua não pertence apenas aos especialistas. É justo supor que ela também não é só minha
A língua é viva e pertence aos usuários. Regras consagradas mudam. A grande questão é que existe um equilíbrio desejável entre a tradição e o uso do Português, por exemplo. Sim, a língua não pertence apenas aos especialistas. É justo supor que ela também não é só minha.
Shakespeare inventou muitas palavras. Algum tradicionalista que invoque os grandes autores do passado, em relação ao Inglês, deveria imaginar que clássicos eram, também, transgressores. Guimarães Rosa era um gênio da composição de termos não dicionarizados ou de usos linguísticos pouco usuais. Difícil saber se o autor do “Grande Sertão: Veredas” inventava ou apenas registrava oralidades e falas populares mineiras. Quando alguém me diz que temos de imitar os clássicos, sempre imagino que a pessoa saiba pouco da capacidade inventiva e rebelde de escritores de primeira linha.
Devo e posso adaptar os usos da língua ao momento atual. “Delivery”, abaixo do Equador, não existia há poucos anos. Hoje, é termo necessário. Profetizo vida longa a “air bag”, “milk shake”, “trailer” e “shopping center”. Num dia, podem vestir trajes adequados à última flor do Lácio. Assim ocorreu com os termos basquete, iate, uísque e xampu (grafo sem aspas ou itálico, porque eram anglicismos que foram adaptados). Eram convidados com passaporte estrangeiro; hoje, pertencem ao time verde e amarelo.
Os termos de origem francesa ou inglesa interagem sem um debate forte. A língua tropeça quando estamos falando dos novos usos de gênero. Usar o masculino, implicando toda a espécie humana, é norma vigente há séculos. Reconheçamos: a norma nasceu de um mundo patriarcal e misógino. Evita-se o feminino não apenas como prática gramatical, todavia pela exclusão real das mulheres. Gramática tem gênero, ideologia e preconceito. É estranho querer manter uma norma da época de Dom Dinis (1261-1325) lendo um texto no seu smartphone contemporâneo. A língua não é de pedra, nem é de vapor. Ela não me pertence; ela não me ignora.
Gosto de usar “todas e todos” para abandonar o invisível do feminino. Não tenho raiva, mas ainda não consigo empregar regularmente “todes”. Acho exótico grafar txdxs, deixando o x como incógnita a ser preenchida pela identidade de cada pessoa.
Vamos refletir. Uma pessoa tem raiva porque vê “todes”. Alega que isso não existe. Se eu escrevi e alguns usam, existe. Porém, a mesma pessoa não apresenta raiva contra as outras mudanças. Vejamos. “Vossa Mercê” era usado apenas para os reis que concediam benefícios, mercês. O “vós” também era exclusivo de altos aristocratas. No fim da Idade Média, pelo uso, grandes comerciantes passaram a usar Vossa Mercê entre si. Na Idade Moderna, Vossa Mercê reduziu-se para “você”. Eclodem formas populares no Brasil como “vosmecê”. Claro: o uso do você encontrou vozes contrárias. Avancemos para o mundo da digitação. A forma sem vogais é quase consagrada: “vc”.
Que “você” seja uma palavra consagrada sem disputas, mas o uso de “todas e todos” desperte tantos debates é apenas sinal de que os irritados nunca estudaram linguística ou gramática histórica. Volto a dizer: eu estranho “todes”.
Em 2050, na prova de Redação no Enem, pode existir uma questão sobre os tempos primitivos quando um grupo impunha o masculino, subentendendo o feminino. Lembre-se disto: pelas normas atuais, Camões não seria aprovado em prova de redação.
Leio bastante sobre os debates gênero e língua. Há mais paixão do que conhecimento dos processos transformadores do nosso idioma.
Tenho de incorporar “shopping center” porque, até 1966, não existia o conceito contido nas palavras em Inglês. Um novo modelo de compras implicou novo termo. Há duzentos anos, os homens comandavam tudo; as mulheres não tinham acesso ao voto ou ao estudo superior. O masculino dominava sobre o feminino, e o uso gramatical consagrava isso. Não é uma norma divina ou feita de aço: é uma convenção que correspondeu a um momento. O momento mudou, outros gêneros foram reconhecidos como possíveis (claro, já existiam). Você aceita todos os termos estrangeiros no seu computador, usa palavras variadas para novas ferramentas e, quando se trata de gênero, torna-se um purista estudioso da gramática, invocando a tradição que você ignora em todos os outros campos.
Como eu respondi a uma senhora em uma palestra, que me exclamou: “Machado de Assis usava apenas todos!”
Eu disse: “Sim, mas só admitiu homens na sua nova Academia Brasileira de Letras. Excluiu pessoas como a senhora”.
Continuei: “Machado não desejou mulheres no seu grêmio linguístico. A senhora reconhece valor no uso da palavra, mas quer ter a voz que teria sido negada na época? Uma coisa implicava a outra”.
Reconheço que tenho certos conservadorismos em Português. Reconheço ainda mais que minha posição pessoal não faz a língua mudar. Se você usa “todes”, tudo bem. Se prefere fazer uma “feminagem” para evitar o termo homem em “homenagem”, sem problema. Cada um de nós tem uma velocidade específica diante do que é novo. Apenas devemos prestar atenção que as mais diversas mudanças na língua são aceitas com tranquilidade por todas e todos. De repente, quando se trata de gênero, surge o ódio.
Tenho esperança de que você perceba: seu problema pessoal não está na gramática normativa, mas em outro lugar.
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de ’A Coragem da Esperança’, entre outros