Talento e gênero

O que eu não percebia naquela época é que museus e livros sofrem curadoria. As escolhas não são livres

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Não se trata de criar cotas. Devemos quebrar o sistema de cotas já existente.

Quando eu era adolescente, ouvi um professor fazer uma afirmação: “Quem mais cozinha no mundo são mulheres; os grandes chefs são quase todos homens. Quem mais costura, idem; os maiores estilistas são homens. O mesmo pode ser dito de todos os campos”. As frases continham muito preconceito, porém, há tantos anos, eu não tinha como responder.

Se eu pegar os livros de história da arte ou frequentar museus, eu concordarei com meu interlocutor misógino. O que eu não percebia naquela época é que museus e livros sofrem curadoria. As escolhas não são livres. A lista do que deve ser exposto ou publicado é marcada pela subjetividade. Eu desconhecia a produção social da memória. Hoje, compreendo que as avenidas das grandes cidades apresentam um número enorme de homens brancos que podem traduzir a ideia, falsa, de que a sociedade repousa sobre os ombros masculinos com pouca melanina. Na verdade, outros homens brancos procuraram pessoas similares a eles e deram os nomes a logradouros.

É assim também na arte. Por que me ensinaram tanto sobre Rodin, nos cursos de arte, mas quase nada sobre Camile Claudel? Por que meus cursos, muitos, sobre barroco, esmiuçaram cada detalhe de Velásquez, Caravaggio, Rembrandt e nenhum de Artemisia Gentileschi? Na música, quantos ouviram Amy Beach, Ethel Smith ou Barbara Strozzi? Até minha amiga Olga Kopylova gravar, eu nunca tinha ouvido falar de Cécile Chaminade. Hoje, amo ouvir a música da compositora.

Eu não falo de um pensamento politicamente correto. Não invoco uma bandeira feminista. Não tenho lugar de fala para tais projetos. Falo de um processo de silenciamento indireto. Ninguém jamais nos dirá: “Vamos evitar falar de talentos femininos”. Isso é agressivo e desagradável. Pois é isto que estamos fazendo: insistindo em povoar, com homens brancos, o céu dos gênios.

Houve uma luta que pareceu menor a alguns. Era a existência de bonecas negras. Uma criança que apenas dispusesse de bonecas loiras e de olhos azuis tomaria aquilo como padrão de beleza único e necessário. Hoje, temos bonecas de muitas identidades étnicas. Isso é bom.

Poderia dizer, de alguma forma, que é um combate a uma certa política de cotas. Como assim? Quando eu olho nas vitrines das lojas de um país como o Brasil uma imensa coleção de bonecas caucasianas, criei cotas absolutas e excludentes. Existe o mesmo na arte: há cotas para homens brancos.

O filme “Antonia” (2018, Maria Peters) conta a história de Antonia Brico. No período entre a Grande Guerra e a Segunda, ela lutou para ser uma regente reconhecida. Apesar de estudar mais do que os outros alunos, apesar de ter que apresentar um desempenho acima da média, ela era excluída por... ser mulher. Com certeza, em 1925, deveria haver mais meninas do que rapazes estudando piano. Porém, na hora de profissionalizar alguém como pianista ou regente, o sistema se afunilava.

Para cada Magdalena Tagliaferro ou Guiomar Novaes que brilharam com força nos palcos, há milhares de outras mulheres que foram barradas. Sim, podemos nos encantar com a potência sonora de Martha Argerich hoje, mas eu me pego refletindo sobre tantas outras que desistiram devido à nossa política invisível e eficaz de cotas masculinas.

No campo das maestrinas, a política é ainda mais eficaz do que nos instrumentos individuais. Regência implica liderança e protagonismo: isso é sempre mais árduo para uma mulher no nosso mundo. Cite os dez maiores regentes na sua memória. Você descobrirá que eles possuem alguma coisa em comum: o gênero masculino.

Há alguma solução? Eu diria que podemos insistir em mostrar a meninos e meninas casos de sucesso em todos os campos. Não se trata de criar cotas. Devemos quebrar o sistema de cotas já existente.

Não se ataca Portinari ou Di Cavalcanti, apenas mostramos Tarsila, Anita Malfatti também. Há beleza enorme em Monet, Renoir e, juntamente, nos quadros de Mary Cassat e Berthe Morisot. Se uma criança tivesse visto, desde cedo, os quadros de Laura Muntz Lyall, visto suas obras em museus e na escola; se tivesse sido exposta a ela, teria visto com mais simpatia o talento feminino? ‘Você, minha filha, pode ser o que desejar‘ é uma frase educativa.

As escolhas falam muito dos que estão com poder para fazê-las. Há 36 doutores na Igreja Católica; apenas quatro são mulheres. Quer dizer que a sabedoria divina flui mais com a testosterona? Não, isso indica que os eleitores são papas, bispos e cardeais homens, formados por teólogos homens e leitores de livros escritos por... homens. Confundir a verdade objetiva com a subjetividade do eleitor é um dos mecanismos preconceituosos ou machistas.

Para quebrar a vigente política oficial de cotas, pais, mães, educadores e educadoras necessitam de ações efetivas. Não é produzir uma consciência feminista: trata-se de quebrar uma falsa consciência do masculino que passa pela soleira da porta dos lares. Precisamos tirar o véu dos olhos das crianças. Tenho esperança!

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de “A Coragem da Esperança”, entre outros