Progresso e Tradição

Nenhuma geração começa do zero. Se cada geração tivesse que recomeçar do início, não teríamos o progresso científico, tecnológico e cultural que temos

Por

Dom Júlio Endi Akamine.

 

Muitas vezes, a palavra tradição evoca tradicionalismo, conservadorismo e imobilismo. Em uma palavra, tradição parece se opor ao progresso.

Essa concepção, porém, deve ser mudada em nossa cabeça. Tradição não se opõe ao progresso, uma vez que o ser humano só pode caminhar e progredir, se receber as descobertas feitas pelas gerações anteriores e se as conservar para, aproveitando todo esse patrimônio recebido, lançar-se a novas descobertas, criações e conquistas.

Nenhuma geração começa do zero. Se cada geração tivesse que recomeçar do início, não teríamos o progresso científico, tecnológico e cultural que temos: teríamos ainda que descobrir o uso do fogo ou da roda. A tradição economiza ao ser humano do presente os caminhos já percorridos pelos ancestrais e lhe permite avançar com maior segurança.

A tradição permite conservar hoje o que foi fruto do descobrimento do passado. Ela liga o presente ao passado e ao futuro: ao passado porque o presente é a superação dele; e ao futuro porque o presente é a base para novos descobrimentos. Por ser “tradicional”, o ser humano transcende o presente apoiando-se no passado em vista do futuro.

Nem tudo do passado, porém, pode ser superado. Há casos em que se reconhece, no passado, pontos quase inatingíveis e de que o presente se alimenta: esse é o caso de obras religiosas, filosóficas, das obras de arte, etc.

Diferente dos animais irracionais, é próprio dos seres humanos ter uma tradição. Um ser só é de fato humano dentro de uma tradição: de uma linguagem, de uma cultura, de um sistema de valores. Como ser social, o ser humano só pode viver dentro de uma tradição cultural, que é como o húmus alimentador da convivência humana. A convivência entre as pessoas cria as tradições, e as tradições tecem-lhe o quadro de referência necessário para as relações humanas. Por causa da tradição, o homem cria a história e, ao mesmo tempo, é condicionado por ela.

Tradição, portanto, não se restringe à conservação nem se confunde com arcaísmo tampouco com apego medroso às tradições herdadas. A tradição está mais ligada ao ato de transmitir do que o de conservar. É graças a ela que transmitimos às gerações sucessivas a vida que nós próprios herdamos dos antepassados.

A tradição é um ato vital, pois transmitimos aos outros não somente os genes, mas também a cultura, os valores, as descobertas, a forma de convivência, as instituições, etc. A própria vida humana é uma contínua transmissão de si mesma ao longo das gerações. Assim o que se transmite não são primeiramente as coisas, mas a vida.

A tradição é um fenômeno humano. É uma ação própria do ser humano.

Precisamos ainda refletir sobre outro tema ainda mais profundo que é a Sagrada Tradição ou Tradição Apostólica, mas isso fica para o próximo artigo.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba