Até os mortos, meu Deus?
Na literatura romântica do século 19, há inúmeros exemplos de poemas, contos e romances ambientados nos cemitérios. Quase sempre esses textos trazem uma névoa de mistério que dialoga com o sobrenatural, bem ao sabor da estética da época. Inclusive, na obra “Noite da Taverna”, de Álvares de Azevedo, há várias passagens bizarras ambientadas em um campo santo.
Todavia, é preponderante observar que tais narrativas são fruto da imaginação de autores que estavam tomados pelo espírito do “mal do século”. Ou seja, reinava, naquele momento, um ambiente de incertezas quanto ao futuro da humanidade, uma vez que a tuberculose dava poucas chances de sobrevivência aos que fossem acometidos por essa terrível doença que, até então, era incurável.
Assim, muitos poetas morreram antes dos 25 anos. A exemplo do que foi a AIDS -- na década de 1980 --, no final do século 19, a sociedade vivia um “caso” de amor com a morte. Tanto que os autores defendiam: “Morra jovem e seja um cadáver bonito”. E tem mais: “profetas” de plantão pregavam que o mundo não chegaria ao século seguinte.
Já no século 20, sob a égide do “realismo fantástico”, o romance “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, apresenta algo totalmente inusitado: com a greve dos coveiros, mortos passam a perambular pelas ruas de uma cidadezinha imaginada pelo autor. Mais que isso, começam a bisbilhotar a intimidade de parentes e amigos que estavam vivos. Nesse contexto, sai o clima de pavor do século passado, para dar lugar à crítica social sob a forma de humor, já que o autor gaúcho debochava das histórias de terror.
Porém, fora da ficção, a realidade dos cemitérios sorocabanos passa longe daqueles tempos românticos vividos por nossos antepassados, em que o campo santo, no dizer do poeta Manuel Bandeira, era um lugar em que os entes queridos “dormiam” tranquilamente.
Assim, a paz se materializava nesses espaços de preces, onde se buscava conforto para alma. Tanto que era comum as pessoas irem mais vezes aos cemitérios, não só para prestar homenagens a quem partiu, como também vivenciar um momento de silêncio, em que pudessem entrar em contato com o sagrado, ouvindo o canto dos pássaros.
No entanto, de acordo com recente reportagem de Vanessa Ferranti, a paz, nesses locais, foi substituída pelo temor, já que uma onda de furtos toma conta dos cemitérios da “Saudade” e “Consolação”, ambos públicos. Os vândalos, sem o menor respeito para com os mortos, estão profanando os túmulos, atrás de peças de bronze para transformá-las em dinheiro da forma mais repugnante possível. Afinal, esses gatunos, sem um mínimo de espírito cristão, apropriam-se daquilo que não lhes pertence e que, de certo modo, tem um valor sentimental para a família dos entes ali sepultados. Pois, quando uma recordação é levada, vai-se também a memória afetiva.
Lamentavelmente, essa não é a primeira vez que este matutino tem estampado, em suas páginas, matérias sobre ações criminosas nos cemitérios. Nesse contexto, as autoridades devem observar pequenos detalhes que passam despercebidos. Não se sabe se isso procede; mas, pelo perfil das ações, parece que se trata de um crime sazonal. Ou seja, acontece em certos períodos do ano, principalmente no outono e inverno. Por quê? Acredita-se que, com o frio, há poucas visitas nesses espaços. Logo, ficam mais “vazios”, o que facilitaria a ação dos gatunos.
Parece, também, que a invasão não é aleatória. Os criminosos sabem o que querem e onde estão os objetos valiosos que serão vendidos rapidinho. Assim, adentram os cemitérios para furtar puxadores de gavetas, vasos e porta-retratos. Não pouparam nem um crucifixo com a imagem de Cristo. Diante desses indícios, é preciso saber quem são os compradores. Se forem localizados, quiçá a “onda” passe. Quanto ao destino do dinheiro, há poucas dúvidas. Mas, isso compete à Polícia, para que os vivos não perturbem os mortos.
João Alvarenga é professor de redação