Filmes da Netflix: ‘Vestígios do dia’ (parte 2 de 3)
Na semana passada escrevi sobre a camada histórica e política de “Vestígios do dia”.
Tratarei agora do segunda camada, a que diz respeito às relações entre criadagem e aristocracia no palácio de Darlington, tomando como objeto de estudo o mordomo Stevens.
Para discorrer sobre o personagem, adicionarei alguns novos conceitos sobre o livre-arbítrio que discuti nos três artigos em que analisei o filme “O lobo atrás da porta”. A questão a ser respondida é: quanto das ações e pensamentos dos seres humanos (no caso presente, Stevens) são o resultado de sua livre escolha -- ou seja, o quanto ele é livre para agir e pensar -- e quanto são o resultado de fatores genéticos, culturais e inconscientes que restringem drasticamente sua liberdade de ação e de raciocínio?
Tratei de mostrar naqueles artigos que nossa capacidade de agir livremente é muito restrita. Gustave Le Bon, em “Psicologia das multidões”, afirmou que “A vida consciente da mente é de pequena importância, em comparação com sua vida inconsciente. (...) Nossos atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente.”
A capacidade de agir e pensar de Stevens é extremamente reduzida, porque suas decisões são tomadas em função da vontade do seu patrão, Lord Darlington. Ele mesmo explica sua filosofia de vida: “Um homem não pode dar-se por satisfeito até ter feito tudo ao seu alcance para servir o seu empregador. Presumindo, claro, que o empregador seja uma pessoa superior, não só em posição social ou riqueza mas em termos de estrutura moral.” Stevens é um caso didático do que pensador francês Étienne de La Boétie descreveu em sua obra “Discurso da servidão voluntária”’ publicado após sua morte em 1563.
É sob esse enfoque que o personagem será a seguir analisado. Sua personalidade engessada e enrijecida, que o torna imutável, determina até mesmo sua vida mais íntima, o da sua relação amorosa com a governanta Miss Kenton.
Para fundamentar minha argumentação, utilizarei uma entrevista do filósofo Homero Santiago concedida ao Instituto Humanitas Unisinos que tem por título “As aproximações entre Spinoza, Nietzsche e Antonio Negri”. O autor é mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde leciona no departamento de Filosofia. Alguns trechos da exposição que se segue foram transcritos quase literalmente.
Santiago analisa a conexão entre liberdade e servidão tomando por base as ideias do filósofo holandês Baruch Espinosa, que viveu no século 17. Esse filósofo tratou do problema central de toda filosofia política: entender “por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação”. Ele nos ensina a conceber a política como atividade de governar que não tenha como centro o sujeito que pensa e age com liberdade, que é ético e moral. Pelo contrário o sujeito de quem a política se ocupa é alguém subordinado a uma série de ardis do poder, os mesmos ardis que o fazem lutar por sua servidão como se o fosse por sua liberdade.
Boa parte da reflexão política de Spinoza é voltada à compreensão de um tipo de poder, o poder teológico-político, que tem por base a disseminação do medo.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec