Filmes da Netflix: ‘Vestígios do dia’ (parte 3 de 3)
Na última coluna escrevi que Spinoza analisou o poder que é exercido por meio do medo. Sem dúvida, isso é muito útil para compreender nossa própria situação presente. Pensando no Ocidente, conhecemos a política que controla pelo medo -- medo do terrorista, do desemprego, do imigrante etc.
Spinoza afirmou que a democracia é o regime superior de governo, pois é o único a permitir o pleno florescimento da natureza humana. E aqui é necessária uma observação: muitas pessoas não querem a liberdade e preferem ser mansamente conduzidas por líderes totalitários de qualquer cor ideológica. Os totalitarismos são fundamentados no terror, na mentira, na sistemática perseguição de inocentes que não se integram ao regime. Hannah Arendt, em “Origens do totalitarismo” afirma que os regimes totalitários emergem graças aos indivíduos que compõem a categoria de “Ralé”. O termo “Mob” usado por Arendt pode também ser traduzido por “turba”, “malta”, “corja” etc. Ralé é diferente de “Povo”. É um “refugo de todas as classes”, existe em todas as classes econômicas e sociais, etnias, níveis de escolaridade. O que une essas pessoas no conjunto é o ódio à representação política (instituições, congresso, parlamento, partidos). A ralé quer se submeter livremente a um “grande líder” autoritário, que se utiliza de discurso de ódio e de violência verbal. É uma forma de “servidão voluntária”. É óbvio que essas ideias da pensadora alemã são fartamente aplicáveis à vida contemporânea.
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No início do filme, Stevens faz uma viagem ao mar para visitar a antiga governanta Miss Kenton, dirigindo um carro de luxo emprestado por Lewis, seu novo patrão. Lewis, como citado anteriormente, é o congressista norte-americano que agora é o proprietário do palácio do antigo Lord Darlington
O tratamento dispensado a Stevens por Lewis é muito menos formal do que o do antigo patrão. No entanto, Stevens não consegue assimilar sua nova condição profissional, reage a mudanças e continua a agir com o mesmo servilismo com que servia o patrão anterior. Suas atitudes não se alteram. Todos aqueles anos servindo a Lord Darlington criaram em Stevens a incapacidade de se adaptar aos hábitos menos artificiais de Lewis. Por isso, mantém os mesmos trejeitos, a mesma contenção de sentimentos mais íntimos, a mesma cordialidade simulada, independentemente das circunstâncias -- como quando recebe a notícia da morte do pai. O objetivo de Stevens é o de servir e sacrificou todas as possibilidades de mudança que lhe poderiam trazer alguma felicidade
Ele foi criado por um pai igualmente mordomo e igualmente subserviente, que mantém o filho a uma distância que convém a um pai rigoroso, tanto na relação íntima com ele quanto na relação profissional de ambos em Darlington. A educação dada a Stevens pelo pai faz lembrar o pensamento de Paulo Freire que afirma que, quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. É o que ocorre com Stevens na sua relação profissional com os subordinados. Penso que sua relação com Miss Kenton não se realiza por vários motivos, mas não pode ser desprezado que entre esses motivos esteja o valor que ele dá à hierarquia funcional e sua visão de poder no interior do palácio, que ele procura a todo custo manter.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec