A Igreja e o Estado
A Igreja reza pelas autoridades porque sabe que um bom governo garante o bem-estar de todos
Paulo exorta a Igreja a fazer “preces e orações, súplicas e ações de graças por todos os homens” (1Tm 2,1). Com efeito, ela não vive nem reza só para si mesma e sim por todos porque Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (2,4). A oração da Igreja é universal porque a vontade salvadora de Deus é universal. Ao longo de toda sua existência, a Igreja sempre procurou erguer “mãos santas, sem ira e sem discussões” (4,8) em favor de todos.
É de se notar que na oração que a Igreja faz, estão incluídos os que “governam e todos os que ocupam altos cargos” (2,2). É admirável isso! Nem sempre nos damos conta de como essa exortação representa uma revolução na relação da Igreja com o Estado e seus poderes constituídos.
Prestemos atenção! A atitude orante da Igreja não reconhece nenhum poder absoluto a não ser o de Deus. Reza por todos os homens inclusive pelos governantes porque também estes estão sob a autoridade de Deus e em dependência dEle. Não podemos nos esquecer que, no tempo de São Paulo, as pessoas não rezavam pelo e sim ao imperador. O próprio imperador reivindicava para si honras e títulos divinos. Havia até mesmo uma liturgia imperial dedicada a orar ao Imperador.
A Igreja não reza ao imperador, mas única e somente a Deus! Ao rezar pelas autoridades deste mundo, a Igreja reconhece o legítimo exercício de um poder terreno, mas não lhes atribui poder divino algum. Assim a oração universal da Igreja recorda que estamos todos submetidos a Deus e ninguém pode pretender ultrapassar os limites que foram fixados pelo próprio Deus. Essa oração universal inculca, portanto, nas consciências dos que rezam que a autoridade terrena dos que nos governam e que ocupam altos cargos só se legitima na medida em que serve ao bem comum e à vontade de Deus.
A oração universal revela ainda um outro aspecto da relação da Igreja com o Estado. Conforme a exortação de Paulo, a Igreja reza “por todos os homens; pelos que governam e por todos os que ocupam altos cargos, a fim de que possamos levar uma vida tranquila e serena com toda a piedade e dignidade” (2,2). A Igreja reza pelas autoridades porque sabe que um bom governo garante o bem-estar de todos. Trata-se, portanto, de uma questão de sobrevivência: a Igreja Católica não é uma teocracia, com nacionalidade, território, legislação, exército, serviços e Estado próprios. Ao contrário, depende do Estado para sobreviver e assim cumprir sua missão apostólica. Sem um Estado minimamente organizado e funcionante, a Igreja e os cidadãos não podem sobreviver.
A função do Estado é certamente subsidiária à pessoa humana. Tal primazia, porém, não torna o Estado dispensável. Ao contrário, para criar e garantir ordem na sociedade, o Estado é indispensável. Sem Estado, a sociedade cai na anarquia e na lei do mais forte. Idealmente falando, o Estado é o espaço mais seguro no qual a pessoa pode se desenvolver livremente. O instrumento mais forte do Estado é o direito.
Não é missão da Igreja substituir o Estado ou a política. Por isso, além de orar, ela inspira a política e colabora com o Estado com o Evangelho e os princípios orientadores formulados para determinadas questões sociais.
A exortação de Paulo em fazer “preces e orações, súplicas e ações de graças por todos os homens” é uma aplicação do que Jesus ensinou: “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). A Igreja reza por César, nunca a César!
O que devemos fazer quando a autoridade se corrompe e se torna injusta? O mesmo princípio nos obriga a nos opor e a contestar as decisões da autoridade que ameacem o bem comum e a dignidade humana. Além disso, outra obrigação é a de não mais eleger quem se utiliza do cargo para seu proveito próprio ou desrespeitar a dignidade humana.
A oração pelas autoridades está ligada ao acompanhamento da atuação da autoridade eleita a fim de que não se corrompa. Ninguém deve ser deixado só na ilusão de que se basta a si mesmo e de que consegue sozinho superar as tentações da política e do exercício do poder.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba