Muro e pontes das conversas de paz
(...) Há, também, as pontes humanas, construídas pelo diálogo que estabelecem
Carmem e Fabíola são amigas desde crianças. Vizinhas, no bairro do Alto da Boa Vista, elas moram em casas separadas por um muro que divide os corredores das residências. A moradia de Carmem fica abaixo da casa de Fabíola. Isso faz com que haja um desnível na altura dos muros. Curiosamente, as duas amigas, com mais de 40 anos de idade, vivem as suas vidas na correria do dia a dia, mas, sempre encontram um tempinho para prosear. Carmem tem dois cães de estimação. Também cuida de um cágado e uma calopsita. Já Fabíola não tem animais de estimação. Para interagir com a amiga, com um chapéu de palha -- tipo mexicano -- na cabeça, como forma de enfrentar o sol deste verão intenso, ela fica em pé sobre um banquinho e apoiada no muro. Carmem, por sua vez, intranquila quanto a uma possível queda de sua vizinha, caso se desequilibre, passa uma hora em pé, no corredor da sua casa, alertando-a para ter cuidado.
Fiquei sabendo que as conversas englobam vários assuntos. Desde os artesanatos que Fabíola produz para obter um ganho extra para ajudar nas despesas mensais, até as aventuras dos bichinhos de estimação de Carmem. Atualmente, as atenções de Carmem recaem sobre sua amada cachorra, de 15 anos de idade, que precisa ir constantemente ao veterinário, pois ficou cega devido à diabete. O amor pelo animalzinho enfermo, manifestado nas conversas, anima as amigas, enquanto há a necessidade de cuidados especiais para Lisa, assunto resolvido pela mãe de Carmem, que paparica a cachorrinha, levando-a para a sua casa.
Foi, no começo de 2024, em almoço partilhado pelas famílias, que surgiu o tema “conversa de muro”. Elas tiveram um insight, na mesa servida de churrasco, sobre os anos que partilham esses momentos de amizade sobre o muro. A inspiração do artigo, com a mensagem para o tema “conversa de muro”, surgiu em um telefonema que recebi.
Gostei da pauta das leitoras, e pensei que há muita gente que faz do muro um obstáculo em suas vidas. O começo de um novo ano serve de reflexão às metas e atitudes de cada pessoa nos seus ambientes. Nos pensamentos e decisões daqueles que promovem a guerra no lugar da paz, o muro da discórdia e egoísmo separa as pessoas por ideologias e ganância. Creio até que as pontes e muros são ícones sagrados como “deuses” para aqueles que não usam o diálogo para unir pessoas, cidades, países. O simples testemunho das vizinhas da nossa história transmite, pelas palavras, uma amizade de décadas que sai dos muros e abrange famílias na convivência saudável de uma refeição de Ano Novo. Bem que esse gesto poderia ser imitado por governantes e exércitos de países vizinhos que, muitas vezes, entram em conflito por motivos torpes.
Assim, as pontes e muros nem sempre significam algo físico. Podem ser, também, mental, pois são construídos pelo ódio, rancor e inimizades. Dia 8 de janeiro de 2024, completou um ano do ato, em Brasília, que abalou as instituições democráticas do País. Infelizmente, a destruição e a agressividade ganharam força nesse dia histórico e triste para nossa nação. Infelizmente, a falta de diálogo e o radicalismo inibem a construção de pontes de amizades que poderiam garantir o acesso a ideias, conceitos e respeito às opiniões divergentes.
Logo, se a ponte de concreto faz a ligação entre cidades e países, para facilitar, com a arte da engenharia, o acesso das pessoas ao trabalho, escolas, hospitais, viagens de lazer, há, também, as pontes humanas, construídas pelo diálogo que estabelecem -- como nas conversas entre as vizinhas Carmem e Fabíola -- uma salutar conexão da sociedade com os nossos antepassados que defenderam o Brasil.
Se o dia 8 de janeiro foi triste para o Brasil, o dia 9 de janeiro de 1822, há 202 anos, foi louvável. Afinal, nesta data, Dom Pedro I declarou que permaneceria em solo brasileiro. Ou seja, não retornaria a Portugal. Então, da conversa de Dom Pedro com os seus assessores do reino, nasceu à frase que marcou a história do Brasil: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto”.
Vanderlei Testa (artigovanderleitesta@gmail.com) é jornalista e publicitário; escreve às terças-feiras no jornal Cruzeiro do Sul