Pata Seca

Soube que teve uma história inacreditável, presente em muitos relatos de universidades e pesquisas sobre a escravidão no Brasil

Por Cruzeiro do Sul

 

Confessei o meu desconhecimento de um personagem histórico de Sorocaba, quando questionado, no dia 8 de fevereiro, pelo marceneiro Ivanildo Silva, o “Roniyer”, morador do centro da cidade, sobre a história do escravo “Pata Seca”. Respondi que nunca tinha ouvido alguma referência desse sorocabano, cujo nome (fiquei sabendo) era Roque José Florêncio, chamado pelo apelido de “Pata Seca”, pelo fato de ter as mãos compridas e finas. Segundo Roniyer, Roque teve uma vida longeva, pois morreu com 131 anos de existência. Sabe-se que seu falecimento aconteceu em 1980. Um dado curioso chama a atenção sobre sua existência: seus mais de duzentos filhos. Pensei que tinha ouvido errado, quando o marceneiro disse sobre as duas centenas de bebês geradas pela paternidade de única pessoa.

Até escrever este artigo, já pesquisei quase tudo disponível, nas redes sociais, a respeito do “Pata Seca”. Soube que teve uma história inacreditável, presente em muitos relatos de universidades e pesquisas sobre a escravidão no Brasil. Infelizmente, esses fatos ainda são desconhecidos por boa parte dos brasileiros.

Agradeci ao Roniyer por oportunas informações sobre esse personagem que, atualmente, poucos conhecem. Durante nossa conversa, fiz a ele uma promessa e, também, aproveitei para perguntar: Afinal, por que ele desejava conhecer os fatos da história desse emblemático personagem? -- “É que ele foi um escravo designado para procriar filhos e há, por meio dos seus duzentos filhos, outras centenas de descendentes”, respondeu-me. Prometi o que estou cumprindo a este leitor: escrever um artigo sobre a figura do “Pata Seca”.

Numa época dos anos de 1880, com as grandes fazendas de café, no interior do Estado de São Paulo, a mão de obra escrava predominava para o trabalho dos fazendeiros que cultivavam a “pérola negra” nos seus cafezais. Entre os “barões do café”, destaca-se o nome do visconde Francisco da Cunha Bueno. O jovem “Pata Seca” era um de seus escravos. Foi aí que Visconde teve a ideia de impor ao rapaz, por ter porte atlético, a função de reprodutor humano de suas escravas. Agindo assim, o fazendeiro teria novos escravos, como conseguia com os seus animais machos em reprodução. Na verdade, o objetivo do dono dos cafezais era continuar a ter escravos sem pagar, pois havia indícios de proibição da importação de novos escravizados vindos da África.

Entre 1501 e 1870, as estatísticas demonstram que mais de 12,5 milhões de africanos foram vendidos como escravos para o continente americano. Desse total, aproximadamente 4,8 milhões de escravos, até pouco mais da segunda metade do século 19, ficaram no Brasil para serviços na agricultura de café, em cidades como São Carlos. A região são-carlense surgiu exatamente do desenvolvimento cafeeiro, em 1857. Foi nessa cidade, distante 200 quilômetros de Sorocaba, que as exportações de café conquistaram riquezas aos seus coronéis dominadores dos escravos, em mais de três séculos de escravidão. Hoje, os estudos atestam que São Carlos foi a segunda maior cidade a abrigar escravos em suas plantações de café do Estado de São Paulo. Felizmente, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel decretou o fim da escravidão no Brasil.

O Roque “Pata Seca” nasceu em 1849. Um ano antes do 4 de setembro de 1850, quando o deputado Eusébio de Queirós conseguiu a aprovação da lei que proibia o tráfego de escravos no País. Com estatura superior a dois metros de altura, musculoso pelo trabalho escravo, o jovem “Pata Seca” criou, no imaginário de seu proprietário, a imagem ideal de um procriador de homens fortes.

Para isso, ganhou algumas mordomias incomuns aos escravos que viviam nas senzalas. Ele podia morar na casa grande do visconde. Afinal, a sua missão iria substituir a ausência dos escravos que vinham nos porões dos navios negreiros, cujo tráfico estava proibido por lei. Como prêmio por sua performance de “garanhão”, o visconde lhe deu terras e autorização para se casar. Ainda existe o sítio “Pata Seca”, na região de São Carlos. Roque José Florêncio foi cultuado como o modelo de resistência rural, por meio da descendência, que procura preservar a memória do pai, como os filhos vêm fazendo, desde 1980, ano do seu falecimento. Em sua homenagem, no Distrito de Santa Eudóxia, região de São Carlos, uma rua leva o seu nome. Notícias sobre esse distrito afirmam que há 30% de descendentes do Roque “Pata Seca” vivendo nesse vilarejo do interior paulista e em muitas cidades brasileiras.

Sem dúvida, é uma história triste da humanidade que ainda não aprendeu a respeitar o ser humano na sua dignidade e continua a usar a mão de obra escrava para obter lucros.

Vanderlei Testa, jornalista e biógrafo, escreve às terças-feiras no Jornal Cruzeiro do Sul